SIMPLES MUNDO DE JÚLIA

Ela deixa as bonecas e vai ver o que a mãe está fazendo. Tem dois anos de pura esperteza e não se conforma com ficar só ali, vestindo e despindo aquelas criaturinhas inertes. Às vezes finge que as embala e faz dormir, até que se cansa e procura os outros brinquedos: O velho carrinho, a bola colorida, o cachorrinho de pelúcia, o frasco vazio de shampu. Tudo sem vida, sem graça e calor. Sem os riscos emocionantes que cercam todos os brinquedos emocionantes dos pais.

De sua forma sem conceito e vocabulário, Júlia pensa no privilégio de sua mãe naquele momento em que risca fósforos, acende as bocas do fogão, corta batatas e outros itens que ajudarão a compor o almoço. Aquilo sim, é que é brincadeira: Atear fogo, usar faca e panela, fazer coisas chiarem na frigideira, abrir e fechar a bica da cozinha. Injustiça ficar à margem de tantas brincadeiras emocionantes. Isto sem contar a descarga no banheiro, que todo o mundo usa; a bomba d´água, que a toda hora é ligada e desligada; o ferro de passar roupas, que é um carrinho muito mais interessante que o seu de plástico. Uma verdadeira máquina quente fazendo o mais teimoso dos dos panos dobrar-se humildemente à sua superioridade.

Júlia volta à sala, desanimada. Sabe que ali, sua mãe quer mesmo brincar sozinha. Não entende a razão, porque ela não é malvada; em outros momentos brinca e sorri com a filha, mesmo sem usar tudo aquilo, e é sempre muito bom. Mas que todas aquelas coisas proibidas dão água na boca e coceira nas mãos, tal o desejo de se divertir com elas, a menininha não pode nem vai negar para si mesma. Sua esperança estaria no tempo, se ela soubesse que vai crescer e adquirir um dia o direito de ter tudo aquilo de que agora só é expectadora.

Passam horas, e dali a pouco chega o pai, que está no trabalho, que deve ser outra brincadeira bem legal. Como se não bastasse brincar o dia inteiro num lugar que adora, pois todos os dias vai, ainda arranja outros divertimentos em casa: Bate pregos, aperta parafusos, mata cupins, troca lâmpadas e faz um monte de outras coisas. A Júlia sabe que ele está por vir e fica feliz. Pelo menos o que ele faz parece menos proibido: Ela pode até ajudar em algumas coisas como dar-lhe pregos e parafusos, além de poder ficar perto, o que é totalmente descartado no caso do fogo, das águas ferventes, do ferro quente, a soda cáustica no ralo entupido e as coisas cheias de cheiros fortes que são usados nos vasilhames, nos móveis, especialmente no vaso sanitário.

Em um todo, a Júlia é muito feliz: A tristeza de não poder se divertir com tantas coisas de adulto passa logo. Intui que as diversões dos pais estão ligadas ao seu bem estar, de alguma forma, e sabe que tão logo eles estejam desocupados a coisa fica ótima: Brincam, brincam e brincam com ela. Beijam sem parar, fazem carinhos, abraçam, dão gargalhadas e criam mil travessuras, como se tivéssem todos a mesma idade, o mundo fosse aquela casa e não existíssem problemas.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 04/07/2007
Código do texto: T551837
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