Retalhos de uma vida.

- "Niño", não comas tantas "pipas"( sementes de girassol), que acabará nascendo um girassol na tua barriga - Dizia a minha mãe, rindo. Na verdade essas sementes não causam dano algum, e ela sabia. Eu estava com sete anos, e era de costume , já tinha prática em descascar as sementes salgadas, como se costumavam comprar. São baratas, quase de graça.

A "Espanha" é rica em girassóis, são campos enormes dessa linda flor, que se vira em direção ao sol, e em troca dessa mirada, lhes empresta a sua cor , alegre e amarela.

As vezes ela me dava uma "lechuga flamenca" (alface crespa), ou uma pinha, que ia aos poucos arrancando os seus pinhões, e comendo um a um, na porta de casa, uma delícia.

As casas andaluzas tem "azoteas", uma espécie de terraço no alto das casas, grande e murado, que se divisam com outras "azoteas", lá se penduram as roupas, criam-se coelhos, há quem faça pequenas hortas, as crianças brincam, enfim...muitas coisas acontecem nesses espaços. Herança moura, que se mantém viva até hoje.

Há poucos anos, visitei a minha família, e eles fizeram uma "barbacoa" (churrasco), na "azotea", naquele estilo americano, com grelha redonda e tripé. E só para ilustrar um pouquinho, de como os espanhóis assam as carnes, eles misturam tudo na mesma grelha, até peixes, o que achei engraçado. Há muita alegria. No verão toma-se sangria e cerveja, e no inverno , vinho. Canta-se muito, se divertem o tempo todo, juntos, as crianças participam , e ajudam bastante, é costume ensinar os menores desde cedo. A carne bovina é muito cara, a mais nobre é o "chorizo", como na Argentina. Picanha, nem se conhece, mas em compensação o pescado custa pouco, assim como os frutos do mar.

Engraçado que o peixe tem duas denominações, quando vivo é "pez" ( no aquário) , e para peixe morto "pescado" ( no prato).

As casas tem uma espécie de ante sala, que chamamos de "casa puerta", onde as pessoas se abrigam da chuva e do vento de areia, qualquer pessoa pode se resguardar, é um espaço solidário, e era comum encontrar estranhos, que cumprimentavam , agradeciam e "se marchavam". De certa forma todos sabem quem é quem, sicrano que é neto de fulana, e o outro que se casou não sei com quem...e por aí vai, e outras vezes, simples mendigos, que pediam um naco de pão, ou uma "limosna" ( um trocado), e sempre ajudávamos. Desde cedo os meus pais nos davam pequenas moedas para incentivar a doação, na igreja, no convento , e nas ruas . A generosidade cristã é muito forte .

Os mendigos de rua costumam ficar perto das igrejas, e como nos EUA, com um cartaz e um chapéu no chão . Vi muita gente do Leste Europeu, gente jovem, muita branca e magra, de olhar perdido, refugiados da Croácia, Monte Negro ou da Sérvia, fugidos da guerra, dava pena, juventude ceifada, e sem destino. Ninguém te toca ou importuna, só as ciganas fazem isso.

Uma vez , já adulto, vi um mendigo cego, com um cachorro ao lado,que segurava o chapéu com a boca, então coloquei o dinheiro e lhe disse; " Mire usted, esto és para su perrito", e ele respondeu sorrindo : " Y no crea usted que el yá no lo sabe" ( Para seu cãozinho/ E não pense que ele já não o sabe).

"Usted" é um pronome pessoal, que é de tratamento, muito comum, usado educadamente no lugar de "tu", quando não conhecemos a pessoa.

Bom, já falei demasiado, abri a minha caixa de recortes, e espalhei alguns por aqui, nesta página. Espero que tenham gostado

Aragón Guerrero
Enviado por Aragón Guerrero em 29/02/2016
Reeditado em 29/02/2016
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