Tempo Amigo e Inimigo

Num certo dia realizava mais uma das costumeiras visitas, que meu trabalho exige, iniciada sem grandes problemas. Não somos bem vindas muitas vezes, isso ficou claro na recepção e mais evidente depois da explicação dos porquês da visita.

Realizamos a entrevista costumeira, olhamos os documentos necessários e passamos para a observação das instalações físicas. Imaginava o que me esperava e acreditava estar razoavelmente preparada emocionalmente, triste engano.

As paredes pálidas, o silêncio atormentador, as camas vazias, os vultos de seres humanos caminhando pelo corredor. Um ar triste e pesado nos contaminava e o desejo das lagrimas era quase incontrolável, só contido pelo dito profissionalismo que deve ser mantido acima de tudo.

Caminhávamos sozinhas, não havia ninguém disponível para acompanhar, olhando os quartos, banheiros, jardins sem flores, o abandono e a dor alheia. Pude ver, em alguns quartos, fotos de jovens e crianças. Acredito ser uma forma de aplacar a saudades daqueles que estão tão longe.

No lento caminhar que impunha as minhas pernas, que pareciam estar cansadas e desanimadas, ouvi a súplica de um dos vultos contorcido na cadeira de rodas. A voz baixa e fraca pedia algo, que infelizmente não pude entender e acredito que não poderia atender. Comovida tentei acalmar a súplica avisando que chamaria uma cuidadora e preparei-me para continuar meu calvário. Antes que pudesse dar dois passos uma mão segurou-me forte, um vulto em melhor condição física gritou comigo as seguintes palavras:

“ Como você é linda...Uma beleza....Está maravilhosa...”

Mesmo antes de que eu pudesse agradecer terminou a fala:

“Uma pena que amanhã vai estar como eu...”

Olhei nos olhos dela, vi a face envelhecida e o corpo debilitado. Procurei palavras de consolo, mas elas fugiram todas correndo de desespero. Forcei um sorriso, beijei as frontes sofridas e dei um adeus. Ela ainda continuou gritando:

“Linda demais...”

Não pude olhar pra trás. Acredito que não conteria as lagrimas. Com muito custo achei uma das pessoas que deveria cuidar dos vultos e pedi que fosse ver o vulto suplicante, mas não fui ouvida e muito menos atendida.

Fui embora visivelmente abalada e ao chegar a minha casa chorei lagrimas de frustração e de impotência. Pensei no que vi e vivi nesse dia único e inesquecível, sabendo essas imagens jamais se apagarão. Analisei a situação, esforçando-me para não julgar, buscando os motivos que levaria as famílias a deixarem seus entes queridos naquele lugar e nas razões que levavam os funcionários daquele lugar a tratarem os vultos daquela forma. Com dificuldade lembrei-me que não deveria buscar culpados e nem monstrualizar ninguém, consciente de que os vultos são seres humanos com direitos que estavam sendo fortemente negados e violados. Percebi então o quão pequena sou e como muitas vezes não há nada para se fazer.

Lembrei-me do tempo, amigo que fornece importantes lições e inimigo feroz que leva a vitalidade e a independência.

Refleti sobre minha velhice: os arames farpados traçando suas linhas em meu rosto; os cabelos embranquecendo; a musculatura perdendo a força; o corpo perdendo a agilidade; a possibilidade de perde a lucidez e o esquecimento. Imaginei-me dependendo de outros para realizar as tarefas mais simples. Esses pensamentos me deixaram apavorada. Nunca tive medo de envelhecer, mas nesse instante pedi, num tipo de oração, que minha vida findasse antes que o tempo exercesse sua soberania e levasse minha mente.

Senti um medo horrível de no futuro ser um daqueles vultos, esquecido pelo mundo e atormentados pela solidão, mas ao mesmo tempo pensei no meu filho e em como queria ter certeza que ele me faria companhia. Sentindo que não seria justo impor meus cuidados a ninguém.

Nesse momento, veio-me a imagem da minha mãe, do amor imenso dividido, da cumplicidade e do companheirismo. Pensei nela daqui uns anos e reafirmei a promessa de que estaremos juntas até o ultimo momento, nunca a deixaria sozinha, em nossas brincadeiras digo que ela é meu delicioso carma e eu sou o dela. Quando ela fica contrariada costuma dizer: “Ainda bem que eu vou morrer mesmo e vou ficar livre de você” e eu rebato dizendo: “Você não ficaria longe de mim nunca, mesmo morta vai vem me assombrar que eu sei”.

Sempre rimos das nossas discussões cotidianas e da teimosia dela em afirmar que não quer atrapalhar minha vida. Mal sabe ela que não atrapalha em nada e que jamais atrapalhará. O amor é tão forte e a divida tão grande.

É minha escolha cuidar da minha mãe, pode não ser a do Ângelo cuidar da dele. Mesmo assim não o culparei e nem sentirei raiva, pois respeito sua liberdade e aceitarei resignada o futuro que me aguarda.

Veio-me então um temor diferente: se eu morresse antes da minha mãe quem cuidaria dela? Sou filha única e nossa família se restringe ao meu filho, minha mãe e eu. Na minha falta estariam os dois sozinhos, nesse instante não me contive e me senti no direito de pedir:

“Ângelo você cuida da vovó, se a mamãe não puder cuidar”.

A resposta foi impressionante:

“Eu vou cuidar da vovó e de você quando ficarem velhinhas, mas mãe quem vai cuidar de mim?”.

Os olhos brilhantes e inocentes esperavam uma resposta que eu não tinha e mais uma vez me interrogou:

“Mamãe, você e a vovó vão morrer né? Igual ao peixinho que ficou velhinho?”.

Sorri docemente e relembrei nossa conversa sobre a morte do peixinho:

“Sim meu filho, tudo nasce, vive e morrer. Você lembra que eu expliquei para você que o peixinho viveu muito, te fez feliz e foi descansar lá no céu.”.

Respondeu-me meio irritado, ele sentiu que eu tava fugindo da pergunta que ele tinha feito:

“Eu sei mãe, eu lembro, mas se você e a vovó morrerem quem vai cuidar de mim?”

Sentei no sofá, o coloquei no colo e falei olhando nos olhos dele:

“Meu filho tudo tem seu tempo de vida que acaba um dia, o meu vai acabar também e bem antes do seu tempo acabar. Haverá momentos que você vai sentir minha falta, mas eu vou estar por perto flutuando no ar e dizendo que te amo. Você está crescendo e logo não precisará que eu cuide de você.”

Ele olhou para mim sério e viu as lagrimas que caiam de teimosas e disse consolando-me:

“Mãe quando você morrer me avisa e fica me esperando, ai quando meu tempo acabar ficamos juntos de novo.”

Escrevendo esse texto, pensei sobre a perda da beleza, e descobrir que isso é o que menos importa para mim. Afinal o estar vai-se com o tempo, restando o ser. Escolho cultivar a beleza interior, engrandecer meu espírito e fazer cada vez mais belo meu ser.

Amanhã quando a lei da gravidade se impuser, a pele perder seu frescor, os cabelos ficarem brancos e o rosto marcado quero manter o brilho no olhar e contar historias como essa às crianças e jovens que encontrar.

Alíria Branca
Enviado por Alíria Branca em 10/07/2007
Código do texto: T560004