Como é que você se chama?

Nestes quase trinta anos nas minhas idas e vindas, nas salas de tratamentos, contra o câncer, sempre, estou acompanhada de um livro! Carrego autores vivos, e, estrelados (gosto de pensar neles vivendo numa bem aparelhada biblioteca estelar celeste), desta vez, Rubem Alves, volta a me acompanhar na quimioterapia!

Terminada a quimio, sento na sala de espera para a consulta de avaliação! Ao meu lado uma irmã Carmelita muito jovem, ostenta na cabeça o véu branco, marca do seu noviciado!

Irmã Maria de Jesus lia a Bíblia!

Abri meu Rubem Alves_ nos pensamentos que penso quando não estou pensando_. A televisão na sala de espera faz homenagem para Cauby Peixoto mostrando fragmentos da sua carreira artística! Ouço com tristeza sobre o seu falecimento!

Volto a minha atenção para o livro em Liturgia do Silêncio, Rubem escreve da sua passagem por um mosteiro da Suíça, Grands Champs. Estava junto, com, outras pessoas para escrever um livro. Numa disciplina do silêncio foram convidados a só falar _quando a fala fosse melhorar o silêncio!_ Informado de que teria que participar da liturgia três vezes por dia, estremeceu! Tinha horror a sermões. Conformado andou até o celeiro velho, de madeira, vidros de várias cores deixavam todo o lugar, numa atmosfera de luz mortiça. O altar, uma mesa comum tinha a figura de Cristo, tapete com almofadas para quem quisesse se sentar..., o vento frio dos Alpes fazia o celeiro torcer e ranger, tal e qual, um navio de madeira numa tormenta. As macieiras nuas de folhas e frutos se agitavam ao vento feito ondas quebrando nos arrecifes...!

Lia esta parte em voz alta para uma senhorinha ao meu lado, pois, na sala de tratamento, percebi seu interesse pelo livro, e, pelo autor... Tinha iniciado a leitura dos pensamentos para ela em meio aos pingos dos remédios, descendo, vagarosamente, para as nossas veias! Ela me certificou que, ali, estava a nossa cura! Acreditei!

Irmã Maria de Jesus fechou seu livro sagrado, afinou os ouvidos para ouvir a leitura!

O estranhamento de Rubem com o atraso dos suíços na liturgia o deixou pensativo. Ninguém falava nada..., vinte minutos se passaram para ele perceber que tudo já se iniciara! Todos estavam lá para se alimentar do silêncio! Silêncio fora! Silêncio dentro _sem os pensamentos_ para ouvir o que nunca foi ouvido! Fernando Pessoa conhecia a experiência do silêncio!, referiu-se _ a algo que se ouve nos interstícios das palavras no lugar onde não há palavras_.

A irmãzinha sorria! Anotou a frase do poeta português num envelope branco! Continuou a escrever: _ A música acontece no silêncio. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós _ como no poema _ A Catedral submersa, de Mallarmé, musicada por Debussy: A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar, quem faz mergulho sabe, a boca fica fechada...

Passei por Albert Camus, contudo, foi o Padre Léo, o alvoroçador do largo sorriso da Irmã Maria de Jesus! _ Rubem conta do convite para participar de um programa de televisão e ao descobrir ser um programa católico da renovação carismática, surpreendeu-se, como que ele, um protestante incrédulo poderia ir... mas..., foi! Lá estava o Padre Léo esperando-o com um largo sorriso, ah!, _ Ele dizia coisas na TV que fariam o papa ruborizar-se..., contou que, ele havia organizado uma reunião de dois mil casais de jovens e velhinhos para celebrar o Dia dos Namorados, num campo de futebol e pediu para todos beijar para comemorar a data. Os casais então deram selinhos... Padre Léo protestou: “Vocês nunca leram a Bíblia? Esta lá no livro dos Cânticos:” Há mel debaixo da tua língua. Então, para obedecer ás Sagradas Escrituras, vamos todos enfiar a língua debaixo da língua do outro para sentir o gosto bom do mel...” Rubem Alves escreveu do sucesso que foi o programa, comentou, então:_ Espero que no céu os salvos leiam o livro do Cântico dos Cânticos...”

No meio da leitura do Padre Léo, a enfermeira trouxe pelo braço, Irmã Graça de Jesus, atordoada pelos procedimentos do exame, sentou-se ao lado de Maria de Jesus, atenta a leitura! No termino da leitura as duas sorriam..., rostos iluminados pela beleza da alegria!

Olhando para as irmãs senti a presença de Deus, e pedi a permissão delas para ler: Outro nome.

Rubem Alves narra a história de uma conversa da sua amiga Tomiko, com um menino:

_Como é que você se chama?

_Francisco.

_Só Francisco, não tem outro nome?

Sim, eu tenho outro nome. Meu outro nome é Deus.

_Deus? Mas que fantástico! Como você se sente quando é Deus?

_Quando o meu nome é Deus, eu fico todo alegria!

Ali, naquela sala de espera eu contei para elas, que, tenho certeza, nós, quatro, também nos chamávamos “Deus” por sermos _todo alegria!