Morreram tuberculosas

     Carmen
     1.
Em uma de suas crônicas, bela como todas que escreveu, Humberto de Campos (1886-1934), no seu estilo humano e elegante, conta como conheceu e como morreu a poetisa Carmen Cinira, que se declarava sua fã incondicional.
     2. O cronista de Sombras que sofrem diz que foi apresentado a Cinira no átrio da Academia Brasileira de Letras, que chamou de "a casa austera das letras, pelo poeta Olegário Mariano, o poeta das cigarrinhas.
     3. Carmen Cinira, segundo Humberto, "era uma linda moça, quase menina"; uma morena "de grandes e profundos olhos turcos, de veludo negro..." Mas confessa que com ela não manteve um relacionamento de amizade, vendo-a somente em três oportunidades. Mostrou-se constrangido.
     4. No terceiro e último encontro, diz Humberto que encontrou uma Cinira transtornada e transfigurada: "a tuberculose minara-lhe os pulmões, envelhecendo-lhe o corpo jovem". 
     5. Mais adiante, que a morte da poetisa fora noticiada nos jornais, "em linhas ligeiras". Conta que, "na véspera da morte", Carmen "pediu papel, e um lápis" e escreveu o seu último soneto, que aqui transcrevo, porque lindo!
     6. VIDA - Vida, que és boa para tanta gente,/ E a tanta gente embriagas de prazer;/ Para mim foste má, foste inclemente,/ E deixaste-me exhausta de sofrer! == Quando, às vezes, recordo, tristemente,/ As agonias do meu próprio ser,/ Tu me causas pavor...De tão descrente,/ Alegro-me, ao pensar que vou morrer!... == Caiba ao Destino a culpa de ter sido/ A minha mocidade um só gemido;/ Mas, sei que o meu faminto coração,/ Na morte, que, bem sinto, virá breve,/ Há de achar o carinho, que não teve,/ E a paz, que tanto mendigou em vão!...
     Letícia
     1.
Eu conheci Letícia. Ela não foi um poeta; foi, sim, uma poetisa. Teria sido um poeta - é bom esclarecer - se houvesse se destacado, a ponto de ser reconhecida como a maior versejadora entre os poetas do seu tempo. É o que ensina o mestre Luiz Antônio Sacconi, no seu excelente Não erre mais.
     2. Conheci Letícia no tempo em que os bondes cortavam as ruas e as ladeiras de Salvador; idos de 1957-58. Fomos passageiros do mesmo bonde. Sentei-me ao seu lado e a flagrei escrevendo um soneto, no seu caderno escolar.
     3. Como se fossemos velhos conhecidos, travamos um papo amigo, interrompido, vez em quando, pelo zum-zum-zum que fazia o cansado bonde da linha X. Do soneto, me recordo o nome: Morrendo de saudade. Elogiei seus versos...
     4. Letícia e o seu soneto me fascinaram!  Tamanho foi o encantamento, que passei do ponto antes programado. Sem perceber, continuei ao seu lado, até o final da linha, onde ela morava. Um bairro pobre, de vielas imprensadas e sinuosas.
     5. Ela, a jovem poetisa do bonde da linha X, era de uma beleza simples e atraente. Distribuía alegria como "um canário solto", assim Humberto de Campos chamara sua poetisa Carmen.
     6. No final da linha, nos despedimos, marcando novo encontro, que nunca aconteceu. Pelo telefone ela me passava seus poemas. Eu os ouvia, e lhe dizia: obrigado, Letícia, vá em frente, garota.
     7. Há uma semana, no obituário de um jornal de Salvador, encontrei, surpreso, o nome de Maria Letícia. Pessoas de sua amizade  me disseram que ela morrera vítima de brutal tuberculose; como Carmen Cinira.
     8. O surpreendente, vejam só, é que não consegui guardar um soneto sequer da Letícia. Dela ficou-me, além dos seus meigos telefonemas, a lembrança do inesperado encontro no bonde da Linha X.
     9. Consagro-lhe esta crônica, repetindo esta frase: "Felizes os mortos que, uma semana depois de sepultados, ainda têm amigos na terra!", de Humberto de Campos, para Carmen Cinira.
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 11/01/2017
Reeditado em 12/01/2017
Código do texto: T5879155
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