CRÔNICA DE FILHO MIMADO

Minha mãe tem um vocabulário que exclui palavras como ingratidão e desnaturado, quando está em jogo - e também desconhece jogos - a relação mãe e filhos. Criou nove, sozinha. Muitas vezes ingratos, tantas outras desnaturados (estou usando palavras do meu vocabulário), chegamos impunemente à meia-idade cobertos desse amor despojado e totalmente gratuito de uma mãe que nunca se perguntou - muito menos aos filhos - se o seu amor é correspondido.

Jamais a vi lamentar-se, quando morávamos em quartos de vilas sem banheiros e dormíamos amontoados sobre esteiras, por ter que trabalhar sem descanso em casas de madames, para nos dar o que mal comer. Lamentava, sim, por não poder nos proporcionar uma vida melhor, não ter tempo para ficar conosco e não saber qual seria o nosso futuro. Mesmo assim nos educou, e afirmo que muito bem, mais com atitudes do que propriamente com palavras, e nos ensinou a lutar pela vida, no que tivemos relativo sucesso.

Excluindo os pormenores de uma infância, depois uma adolescência de tantas privações que faziam muita gente pensar que não chegaríamos à idade adulta, hoje me toca profundamente a lembrança da abnegação de uma mãe que se proibia comer, para que sobrasse um pouco mais para nós. Uma mãe que nos protegia dos maus como se fosse uma onça destemida, e nos cobria de um zelo e uma doçura inexplicáveis no pouco tempo que tinha, que punha por terra toda a nossa revolta, fazendo-nos amolecer aos poucos e ter um desejo enorme de também ampará-la, tomá-la no colo e proteger do mundo.

Toca-me mais ainda, e esta é a razão do meu relato, lembrar que jamais ouvimos de nossa mãe aqueles clichês maternos do tipo "filhos ingratos", "faço tudo por vocês e tenho isso em troca", "vocês ainda vão se arepender, seus desnaturados", e por aí afora, quando gritávamos nossos chavões à moda "não pedimos para nascer", entre outros que as ruas nos ensinam, tão logo lhes somos apresentados. Ao invés disso, concordava e nos pedia perdão pelo sofrimento a que fomos expostos ao sermos abandonados por nosso pai.

Ainda viva (embora meu texto possa parecer uma homenagem póstuma), minha mãe continua cobrindo seus marmanjos de amor. Somos todos maduros, com vidas próprias e condições sociais bem melhores, mas ela não se dá por satisfeita e vive tentando nos compensar pelo que sofremos, como se a própria nunca tivesse sofrido. Quer saber do que um precisa, o que o outro está sentindo, por que é que este emagreceu e aquele parece abatido.

Está doente, a minha mãe... Muito doente... Anda bem devagarinho, respira com dificuldade, o rosto é cadavérico. Ainda assim, exala uma felicidade enorme ao ver os filhos felizes e realizados, acumulando conquistas consideráveis. Ao mesmo tempo fica triste, ao saber das dificuldades de um ou outro que atravessa uma fase mais difícil. Finge para si mesma estar em pleno uso de suas forças e começa a tramar, às escondidas, as mais diferentes formas de ajudar.

Dizem que mãe é uma só... Concordo. É realmente uma só. É a minha mãe.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 07/08/2007
Reeditado em 20/09/2007
Código do texto: T596715
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