O VELHO DO SACO

O ônibus sempre leva uns bons minutos naquela pequena rodoviária logo depois do ponto inicial. Sentado próximo à janela e com uma criança de dois anos ao colo, o homem passeava os olhos no cenário externo: Via gente indo e voltando, o barraqueiro dos doces dando um breve cochilo, o motorista lá fora dando risadas, a vida fervilhando naquele pedacinho de mundo que tem muita história para contar.

Deteve-no grupo de idosos e portadores de deficiências que aguardava para entrar pela porta da frente, conforme reza o direito. Direito este que as empresas de coletivos sempre querem negar e o fazem vez e outra. Muitas vezes são os motoristas que arbitram, por si próprios, não permitir que essas pessoas tenham a gratuidade.

No meio do grupo, um senhor baixinho e simplório olhava para o céu e coçava o saco, espantosamente à vontade. A mão resvalava por entre a calça, ele abria levemente as pernas e mandava as unhas, sem que nenhuma outra pessoa, nem mesmo a mais próxima desse por isso. Aliás, isso é algo tão corriqueiro que as pessoas acabam mesmo se acostumando com essas e outras práticas que deveriam faze corar.

Distraidamente, já que estava sentado à espera da partida, o passageiro viu. Mas apenas viu, sem dar importância, sem sequer reparar na falta de higiene e bons modos do velho. Logo desviou o olhar para outras cenas, e certamente apagou a imagem da mente que se perdia mais em seus pensamentos do que propriamente no que os olhos enviavam naquele instante. Logo todos entram, o motorista liga o motor e a viagem se reinicia com a tranqüilidade inerente às tardes naquele itinerário.

Não demora, e logo atrás do homem da criança no colo é iniciado um ritual de mastigação barulhenta. Quem acabara de sentar abriu um pacote de biscoitos de polvilho e danou a comer como se estivesse em desespero de fome. Aquilo atraiu de chofre, a atenção da criança que lançou os olhos arregalados sobre o pacote de biscoitos, demonstrando claramente o seu desejo de comer também. Só que o ônibus já partira, não havendo mais como o pai satisfazer seu desejo ou gula, talvez o caso típico do que chamam de “olho maior do que a barriga”.

Como nos lotações o que não falta é gente solícita e boazinha, não demorou muito para que a criança fosse atendida, pelo menos em parte. O velho coçador, que era também o comedor de biscoitos, com a maior sem-cerimônia do mundo usou a mesma mão para puxar uma unidade e oferece-la. Distraído e sem noção, o pai agradece com um sorriso e deixa o filho saborear o agrado com a mesma sem-cerimônia.

O velho do saco existe. Não é lenda, e realmente faz mal às crianças. Ele pode estar em qualquer rodoviária coçando o dito cujo, para depois infectar um biscoito, uma bala, um doce ou seja lá o que for, garantindo o ciclo dos germes e bactérias que por essas e outras não corre o mesmo risco de extinção das espécies que deveríamos preservar.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 15/08/2007
Código do texto: T608667
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.