O APAGÃO

Luzes acesas, TV ligada, risos e gritos dentro dessa estranha caixa de quadros que se mexem. Logo ao lado, estou eu confrontando o papel em branco, inteiramente limpo, sem riscos, rabiscos, sem palavras, sem ter o que escrever. De repente um apagão, ouço as vozes de lamento, ouço a porta abrir, todos querem saber se os outros também foram vitimas desse corte de energia. Tantos anos vivendo sobre as luzes artificiais que as pessoas se esqueceram da naturalidade da noite, a escuridão, o silêncio absoluto. Caminham dentre a escuridão procurando fósforos, velas, lanternas. Tropeçam nos obstáculos do piso, como se não conhecessem a própria casa, e talvez não conheçam mesmo. Lá fora as crianças brincam no escuro, e as Mães advertem sobre os perigos de ter um ladrão escondido por entre os muros. Dentro de casa, todos estão sentados, calados, olham um para o outro sem ter o que falar. Para quebrar o gelo, alguém pergunta: “Que horas a luz vai voltar?” Ninguém responde.

Acharam uma vela, apenas uma. Pôs-se ela no meio da sala, no meio de todos. Meu avô começa a contar várias histórias, entre elas algumas terror, dessa vez todos prestam atenção no que ele diz. Alguns ficam assustados, outros riem.

Saio do quarto, dessa vez todos notam a minha presença. Vejo o rosto de todos, atentos a história a ser contada. Eu não sabia, mas como num daqueles filmes, tínhamos uma família, estávamos fazendo coisas de família. A sensação era estranhamente linda. Saio até a rua e vejo as crianças brincando de esconde-esconde no escuro, como nunca havia visto antes. Eu não sabia, mas tínhamos uma vizinhança, tínhamos crianças que ainda brincam como criança. A sensação que eu tive ao ver as crianças correndo de um lado para o outro, se escondendo atrás dos carros, e em cima das árvores, era de que o mundo ainda é um lugar bom, as pessoas ainda sabem agir como humanos. Voltei para casa, entrei de fininho e desliguei todos os interruptores, fechei as cortinas, quando a luz voltar ainda vamos ser uma família. Entrei em meu quarto, tranquei a porta, deitei-me e fiquei em silêncio, ouvindo as histórias e os sons de medo.

De repente as crianças lá fora gritam. Eu sabia o que aqueles gritos significavam, a luz havia voltado. Mas aqui, dentro de casa, as lâmpadas não acenderam e a TV não ligou sozinha, as cortinas impediram que a luz invadisse a nossa casa e matasse aquilo que eu vi como família. Levantei-me e todos estavam extasiados de afetividade, embriagados de felicidade. Logo, pegaram no sono, alguns dormiram ali mesmo no sofá da sala, a vela aos poucos se gastava, se apagando lentamente, levando consigo toda aquela estranha sensação que tive meia hora antes. Voltei para a cama, deite-me com os olhos cheios d’água, naquela noite eu tive uma família. Dormir com um sorriso nos lábios denunciando toda a minha felicidade.

Até mais ver, família. Até o próximo apagão.

Ainda Menina Mar
Enviado por Ainda Menina Mar em 01/02/2018
Código do texto: T6242214
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.