TULIPAS

Às 5 da manhã o galo cantava, anunciando o nascer do Sol, meu Pai se levantava e coava o café. Minha Mãe, logo cedo, derramava todo o feijão sobre a mesa, escolhia os melhores grãos e os derramava sobre a panela de barro, caiam como bolas de gude sobre o chão da terra vermelha por onde eu e meu a amigos nos reuníamos para brincar, era filho único.

O meu Pai logo trazia a lenha, e á colocava perto do velho forno feito de tijolos e barro, eu ouvia tudo ainda deitado sobre a cama de colchão improvisado, com palha por baixo e lençóis por cima. O cheiro da lenha queimando e os estalos da madeira me acalmava logo cedo.

Na hora do almoço os pratos de alumínio se esquentavam com facilidade quando o feijão quente se deitava sobre ele, algumas vezes ele vazava devido aos furos no fundo do prato, mas a farinha tampava os buracos. E antes de tocar na comida, uma oração, agradecendo á Deus por mandar a chuva, e termos uma colheita boa.

Meu Pai era muito conhecido na região por ser um grande contador de histórias, e também por ser um grande mentiroso. Segundo ele, certo dia ao amanhecer todas as vacas, bois e cavalos do celeiro estavam agitados, tanto que uma das vacas até conseguiu subir em cima do celeiro, mas ele não sabia como isso seria possível, então ele subiu no celeiro e tirou a vaca de lá. No dia seguinte a mesma coisa, então ele novamente á tirou de lá, no terceiro dia ele instalou uma placa de ferro embaixo da vaca e mudou a alimentação dela, e isso nunca mais aconteceu. -Então eu o perguntei "Pai, o que você deu para a vaca comer?" E ele respondeu: "Capim com imã". -E as risadas eram as mais puras e sinceras possíveis.

Minha Mãe era muito conhecida na região por ser uma grande cozinheira. Ela nem precisava saber a receita de algum prato, por mais requintado que fosse, ela apenas precisava provar, e assim como em um passe de mágica ela adivinhava todos os ingredientes.

Não cheguei a conhecer meus avós, tudo o que sabia deles vinham de histórias e conselhos dados por meus pais de como se tornar alguém na vida. Mas um retrato deles feito a mão na parede da sala algo que me dizia que eram rígidos, estavam tão sérios. Meu nome é Claudionor, esse nome foi me dado em homenagem ao meu velho avô.

O colégio em que estudei ficava á quase 2 quilômetros de distância da fazenda. Todos os dias eu caminhava debaixo de Sol e chuva para aprender algo, ser alguém na vida, distante de toda aquela vida na roça. –Assim pensava os meus pais. Para os meus Pais eu deveria ser um Doutor, algum médico ou advogado.

Aos meus 14 anos a senhora morte resolveu nos visitar, levou a minha Mãe, me lembro que em seu velório quase todos da pequena cidade estavam presentes, trouxeram lágrimas e tristeza para a nossa pequena fazenda, sementes de saudades que futuramente brotariam com o choro de meu Pai, e ele mesmo ás colheriam. Depois daquele dia os lençóis da minha cama eram finos demais, e a palha fazia minhas costas cocarem, depois daquele dia eu nunca mais dormir em paz.

Pela manhã o barulho dos feijões caindo sobre a mesa nunca mais foram escutados, não da mesma forma, eles caiam como pedras sobre a mesa. Meu Pai quem assumiu a tarefa de cozinhar e colher. A noite o meu Pai ligava a velha vitrola e ouvia sempre o mesmo velho disco. Um dia me pus a perguntar o porque de estar sempre ouvindo aquele disco, e ele me respondeu: "Foi ao som desse disco que eu, e a sua Mãe, nos conhecemos". -Me sentei ao lado dele e ouvimos o mesmo disco a noite inteira. Na manhã seguinte fomos visitar a minha Mãe no cemitério. Ele levou algumas sementes de Tulipa, uma flor que estava sempre brotando na fazenda, independente da época do ano, ela sempre estava mais viva do que nunca, elas não brotavam em nenhum lugar da cidade, mas na nossa fazenda elas nasciam com muita facilidade, e por isso a minha Mãe gostavam tanto delas, ela dizia que não somos nós que escolhemos onde as flores vão nascer, são elas que escolhem onde querem perfumar. -Peguei um pouco de terra da fazenda e levei junto as sementes que meu Pai consigo carregava. Poucos dias depois as flores de tulipa floresceram.

5 Anos se passaram após a morte da minha Mãe. Ainda me lembro bem da noite de 20 março em 1980, fazia frio, e as Tulipas abraçavam o Outono, elas ficavam ainda mais bonitas no frio. Mas naquela noite a vitrola não estava ligada, não me importei, deitei em silêncio e ao amanhecer não ouvi nenhum barulho, a casa estava silenciosa, silêncio assim eu nunca havia escutado, me levantei pela manhã e o meu Pai parecia ainda estar dormindo. Coei o café, escolhi os grãos de feijão e acendi o velho forno a lenha, depois do almoço pronto fui até o quarto onde meu Pai dormia, e ao tentar acordá-lo, ao tocar em seu rosto ele estava frio como o vento gelado que estremecia as janelas. A morte havia entrado na nossa casa a noite e levado o meu Pai. Segurei em suas mãos geladas e chorei em silêncio. O mundo desabou sobre minhas costas e eu estava cansado demais para tentar ergue-lo. Primeiro a minha Mãe e agora o meu Pai! No enterro levei algumas sementes de Tulipa e plantei sobre o túmulo, e novamente elas floresceram.

Naquele mesmo ano de 1980 já com 19 anos terminei os estudos, decidi que iria satisfazer o sonho de meu Pai, vendi aquela velha fazenda, fui para cidade grande, me formar em medicina. De lembranças trouxe na mala apenas os retratos de meus avós, o velho disco do meu Pai e algumas sementes de Tulipa. Comprei uma casa na cidade, mas as sementes de Tulipa nunca floresceram, as terras daquela fazenda eram mesmo abençoadas.

Em 1988 me formei em medicina, encontrei um grande amor do qual me casei e estamos juntos até hoje, ela se parece um pouco com a minha Mãe, adora cozinhar pra mim, não estou sendo egoísta, tampouco mal agradecido, mas até hoje ninguém conseguiu superar o tempero da minha Mãe. Não era a toa que a velha fazenda ficava lotada aos domingos quando minha Mãe cozinhava para os nossos vizinhos e amigos.

Consegui instabilidade financeira, talvez hoje para meu Pai eu seria um homem que conseguiu vencer na vida. Mas nada me faz mais falta do que a simplicidade da velha fazenda, da poeira vermelha que sobia na estrada sempre que um caminhão passava, do barulho dos feijões caindo sobre a mesa, das bolas de gude, das historias do meu Pai. Se hoje eu tento contar uma das velhas histórias do meu Pai para um dos meus filhos, eles me acham chato, logo saem para ficar plantado na frente á um Vídeo Game ou um computador, as estradas estão todas asfaltadas, e as Tulipas não crescem por aqui. -Me dizia o médico Dr.Claudionor, alguns dias depois de me operar.

Soube que ele morreu alguns meses depois de ter salvo a minha vida em uma cirurgia. Morreu em casa, a esposa dele me disse que na noite da morte dele, ele ouviu um velho disco de vinil que guardou durante anos, repetindo as mesmas músicas a noite inteira, e em uma manhã de Outono ele faleceu. Sabendo do ocorrido fui prestar as minhas homenagens, afinal, ele salvou a minha vida. No enterro choveu muito. Fiquei intrigado com a história das Tulipas que floravam durante o ano inteiro, e resolvi visitar a fazenda onde o Dr.Claudionor morou quando criança. Ao chegar no local a fazenda ainda era a mesma, mas as Tulipas não estavam mais lá, a família que morava no local me disse que elas não floresceram durante muitos anos e morreram. Peguei um pouco da terra da fazenda e comprei algumas sementes de Tulipa, 1 mês depois da morte do Dr. Claudionor eu voltei ao local onde ele foi enterrado, decidi que iria plantar as sementes de Tulipa sobre do tumulo dele, mas ao chegar lá me deparei com 3 flores de Tulipa já plantados sobre o túmulo. Até fiquei um pouco decepcionado pois não pude ser o primeiro a ter feito aquilo. Então entrei em contato com a família do Dr.Claudionor, e perguntei a eles quem teria plantado aqueles pés de Tulipa sobre o túmulo, mas eles disseram que não teria sido nenhum deles, e que ninguém sabia que o Dr. Claudionor gostava das flores de Tulipa.

Até hoje ninguém sabe como aquelas três flores de Tulipa surgiram.

Ainda Menina Mar
Enviado por Ainda Menina Mar em 03/02/2018
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