O leão do circo

Enganei-me muitas vezes na vida. Não crer, não ver e não aceitar. Estes foram maiores. Tantas negativas juntas. São males da alma, verdadeiras restrições inibidoras das oportunidades de progresso. Nesse ponto, começar a curtir Águas de Lindóia foi uma boa decisão para combater os meus "nãos" pessoais com muito suor, passo largo e ar livre. Foi numa destas deliciosas oportunidades que minha descrença em situações impossíveis foi colocada à prova.

Um dia de domingo, insisti em ficar em pé bem cedo, desafiei o poder da gravidade e fui caminhar. Sai de minha casa no centro, subi morros, mas, a bem da verdade, quase cheguei em Monte Sião.

Visitei cidades pelo Brasil afora, mas foi em Águas de Lindóia que reencontrei o prazer de passear bem "descolado". Saia à rua com o pior tênis judiado, parzinho da velha camisa preta de estampa do "Sistem of Down", combinando com o boné do " guaraná antártica" e com a bermuda verde de mil novecentos e nada. Aquele cantinho mais verde, com aquele ar e suas subidas e descidas renovaram em mim o um verdadeiro amor de caminhar, sem vergonha de ser quase um andarilho em andrajos. Vergonha, isso não tinha.

Andei muito e me cansei mais ainda, então, na volta para casa, dei-me a chance de tomar um coletivo. O pessoal da cidade o chamava de "Kinder Ovo", acreditava que era pelas cores azul , vermelho e branco e por ser um microonibus de laterais arredondadas. Fiquei no ponto e aproveitei para tirar a dúvida do porquê da alcunha. Me disseram que era devido a surpresa que esse transporte dava a cada percurso. Ri bastante. Enquanto isso, mais gente foi chegando e nada do ônibus. Será que caberá tanta gente? Muito barulho de musicas e vozes. Passou um carro de som, fato incomum, atraiu a atenção geral, quando anunciava o circo na cidade e puxava um engate. Nela, uma jaula com um leão, que na época não era proibido ter no circo. Era o destaque, o bruto felino. O veículo passou uma, duas, três vezes na avenida, seu som nas alturas, anunciando a “matineé “ seria no mesmo dia. Assim que me virei para fugir do som e do sol em brasa que me negavam conforto, vi a sombra perfeita perto da loja de doces e, me dirigindo até lá, ouvi muitos gritos, seguidamente da debandada das pessoas no ponto. Correria para todos os lados. Logo mais em frente, uns trinta metros, o leão vinha caminhando, solto e calmamente, enquanto o carro de som se afastava, sem perceber a jaula arrebentada.

Ato contínuo, esqueci o cansaço, e desandei em atropelos para o primeiro local seguro que vi, no comércio de doces e, ainda bem, tinha um banheiro. Forcei a porta e lá dentro, cerca de dez pessoas aterrorizadas estavam no abrigo seguro do baita animal, um folgado, que deitou-se à porta do estabelecimento, perto daquela sombra mais que perfeita a essa hora.

Pelo vão da porta e do vitrô do recinto, ouviam-se pedidos de socorro, com gente em choro compulsivo. Tinha mais pessoas escondidas atrás do balcão da loja de doces, em cima do muro divisor e embaixo dos automóveis estacionados. O leão só na dele, nem aí com a balbúrdia coletiva reinante. Ele ficou deitado ali por boas duas horas até conseguir ser capturado por policiais militares da vizinha cidade de Serra Negra, já que os PMs da cidade estavam atendendo a uma ocorrência, foi o alegado, sem mérito. O pessoal do circo que estava junto chamava o leão pelo nome de "bafão". Era bicho manso. Bastou chamar e abrir a grade da jaula, recheada com pedaços de pescoço de frango cozido. No fim, ele era bastante devorador de ossos, certamente de galinhas, gatos e cachorros que sumiam da cidade quando passava o circo.

Eu não conseguia crer no que havia acontecido. Se só me contassem não acreditava, porém eu vi e vivi todo aquele choro, susto e riso, tudo junto. Nestas alturas, a cidade inteira já sabia do leão que escapou da jaula na avenida Monte Sião. Muitas pessoas vieram do centro da cidade para ver de perto. Enquanto enjaulavam o "Bafão", voltei à pé, sem cansaço e sem ver o ônibus, em nomento algum passar. Me senti refeito pelas doses de adrenalina no episódio. Perto do balneário, já senti vontade de correr e, com o bom humor de volta, na idéia de felicidade que rimava com liberdade e sentindo aquele prazer enorme das caminhadas ao sol e vento, disparei a correr, aos berros de que o leão do circo que escapou de novo e estava vindo. O carro do circo com o leão preso, vinha escoltado pelas viaturas policiais de giroflex ligado, o que reforçou demasiado minha dramatização. E olhava para trás, e continuava a correr. Quem vinha pela calçada, dava meia volta. Até os carros que subiam o morro, retrocederam, manobraram e se mandaram para o lado oposto. Foi um alvoroço geral. Só gente que correu mais que eu pelo calçadão e pelo bosque adentro. Ri disso tudo por muitos dias. Acho que fiquei menos cético com os fatos inacreditáveis e de alma mais leve, embora me veja ainda, fechado com fortes fronteiras, entre os abismos e as prisões voluntárias. Lembrei novamente da frase de Stephan Zweig, “ quanto mais me limito, mais atinjo o ilimitado” , só que nunca mais deixei de fazer caminhadas. Para minha maior segurança , arrumei um "street dog" para me acompanhar, confesso que queria um leão, como o "Bafão", manso e assustador, contudo o único e inverossímel parceiro de andanças que uma vez eu tive de verdade.