Perfil

Saio em defesa da preguiça com seus movimentos lentos e delicados. Braços longos feitos para abraçar. Acrescento ao zodíaco o meu signo: a preguiça. Esplêndido ser nascido para sonhar na copa da umbaúba e de eterna vida mirim.

Senhoras e senhores: a preguiça é a filosofia no galho! Dorme em versos perfeitos para exemplo quando murmura: “eu não quero é trabalhar porque eu também sou brasileiro.”* Viva o país que possui a preguiça de origem, depois de 22 e da Arte Moderna! Minha preguiça tardígrafa ficaria melhor no cinema. Que onirismo extraordinário! Quanto a mim desajeitado de nascença ao telefone provoco embaraço podendo cair em silêncio como se a ligação chegasse ao fim. Toda depressão sobre “destino e rumo” recebem fuga ideal. Sigo escapando para dentro da alma. Coleciono sonhos quando acordo. Guardei no papel o pesadelo que tive obra prima da ilusão. Papel que joguei fora por descuido e com o susto de documento importante. Nele flutuava e flutuar caía melhor do que voar, bem mais seguro no plano oculto. O transporte fácil seguiu devorando a dimensão sem esforço.

Coleciono interjeições perdidas nos dicionários mofados. Coleciono fotografias e pecados. Coleciono adjetivos como aparreirado, ensinativo, literário. Se pudesse alterar algo na natureza humana acrescentaria o elemento alado. Por divertimento imagino todos com asas, pois todos deviam se permitir uma foto com elas. Asas de pássaros, não de anjos. Nossa origem de emplumados gigantescos que vieram de um lugar distante e esquecido. Nosso lugar onde Deus jamais conteve em si sentido algum, origem de tudo. Um antes que compõe um círculo no vazio perpétuo desenhado. Invento minha crença e meu signo. O templo do meu coração de ateu prático, filho da imaginação ardente. Creio em duendes e seres abstratos. Porém outros que não aqueles vegetando no musgo de um cogumelo. Cogumelo chapéu-de-cobra. Chapéu-de-cobra onde mora a cobra muito branca, com uma filha tão branca e difícil para casamento. Mas arrumou. Foi feito então a grande festa. Uma festa que não compareci porque não tive sapato.

Certo é que estou envelhecendo num museu de imagens. Sei voar sem sair do lugar desde menino, portanto há um menino em mim. Do menino até agora existe um engenheiro e um síndico se procurando num complexo de resolução fácil. Sei que minha brincadeira imaginária predileta, essa de meter asas no retrato dos outros, poderá passar por deboche. Declino aqui o meu perdão estético. Busco consolo e gasto meu dia de acordo com minhas posses. Pulo para dentro do ônibus e dirijo-me até a Barra. Barra que é daqui, porém se chama Barra do Chuí.

Creio na namorada, pois surte efeito no retrato. Creio no carnaval disponível no tempo. Recolho e sigo colhendo do passado algum sentido de ilusão em dois pontos. Sim, luto pela oportunidade dos reprovados como mal goleiro que fui. Peço agora perdão e escuto todos na escola dizendo “não, não perdoamos!”. E um sonoro “bem feito pelo gol na cara!” vem junto. Devia esquecer facilmente.

Jogo xadrez bem e mal dependendo da ocasião. Perco no xadrez sempre pelo mesmo motivo: quando julgo o perigo dos lances como zumbido das abelhas sendo na verdade o sibilar das flechas. Venço sempre pelo mesmo modo: muita atenção ao movimento das trinta e duas peças. Vejo no empate o demônio inventado quando nenhuma das partes conhece a verdade: o que perde chora o pranto gelado da derrota e o que vence reboa as trombetas da vitória. Num único lance o vencedor não ganha e o perdedor não perde.

Sou um operário simples. Um vendedor de livros usados que vende pouco, portanto escreve nas horas vagas. Tenho o rosto redondo. Olhos que alguns dizem verdes e outros azuis. Tenho nariz fino e pequeno, boca pequena, pernas longas e pés pequenos. Novas gorduras acumuladas de chopes, pizzas e farinhas desenharam o esbanjado em calorias nem magro, nem gordo. Nem feio e nem bonito. Nem tolo nem sábio.

Gosto mesmo dos “fins de semana para sempre” que mora no ar das pessoas boas. Admiro o capricho matemático, mas odeio os números que me faltam. Amo a orbe e o passeio do táxi pelas ruas. Amo os versos escolhidos coagulados na zona litorânea como o látex ao sol. Busco amar o fluxo e refluxo das marés. Amar o mar imenso tingido pela produção. Amar pessoas sujeitas aos presságios do dia e devoções vazias da noite. Amar a moça retratada com reserva e sem publicidade. Amar a discrição e o amor brincando de passar a tarde ao meu lado.

Por ser meio calvo procuro acreditar na influência da lua para a futura paz universal. E como a vida há de passar como o vento nas asas de um besouro, morrerei e o jardim não morrerá. Sei que um anjo zombeteiro no alto do meu jazigo tocará sua feroz lira cantando: “...quando eu morrer o mundo pode se acabar!” **

Quando eu morrer espero nunca dar adeus às flores.

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* Referente ao poema Diabo Brasileiro de Jorge de Lima. Semana da da Arte Moderna. Revista de Antropofagia.

** Do cancioneiro popular.