VIVÊNCIAS DE UM AMIGO GAY

Sempre tive mais amigas do que amigos. E ao longo da vida, no meio de tantas amigas, todas queridas, sempre houve aquela exceção, em tempos diferentes: a especial; que me elege o seu amigo gay, mesmo sabendo que sou hétero. Tais mulheres de sensibilidade além da grande sensibilidade que já é própria da mulher acabam descobrindo a alma feminina que me habita de forma tão profunda, nas preferências que nada têm a ver com sexuais. Gosto de um conjunto de coisas delicadas que em separado não chamariam tanto à atenção mulheres mais sensitivas do que propriamente sensíveis: leio e faço poesia; fotografo bichos e flores; sei bordar; sou um pai com características de mãe; jamais cantei uma amiga; não confundo chamegos com cantadas e sou capaz de manter uma relação de confidências, compartilhamento de privacidade, confiança irrestrita e trocas de afeto, sem pensar no que geralmente chamam de “finalmentes”.

Só me permito saber que uma mulher me deseja, quando surge uma confissão inequívoca de seus lábios. Minha grande amiga pode ser carinhosa, íntima, permissiva, sem pudores, e nada vai me fazer determinar que me deseje. Em tudo isso, vejo apenas a liberdade que fluiu de uma confiança irrestrita, sem medos e armaduras, base natural de um relacionamento raro de amizade para toda a vida entre pessoas de gêneros opostos. E quando surge a confissão inequívoca do tal desejo, paixão, talvez amor, não sou o tipo de homem que prova que é homem com uma reciprocidade de conveniência ou honra masculina. Sei dizer um “sinto muito, mas não é o que sinto nem desejo“; fazer um apelo para “não estragarmos o que foi conquistado com tanta magia, delicadeza e confiança” ou, em última instância, caso haja insistência, declarar segura e simplesmente minha felicidade com o relacionamento amoroso que já mantenho e dele não abro mão. Evidentemente, esse momento seria o fim da relação especial de amizade, na qual sou o amigo gay.

Também elejo, em tempos raros e diferentes, as minhas amigas gays, embora héteras, ou realmente gays, por entender que as tais alcançam o status de pessoas com as mesmas condições que tenho, de manter uma relação tão delicada, bonita e rara. Uma espécie de mundo à parte, no qual ninguém das relações comuns pode penetrar. É claro que uma convivência dessa natureza envolve a descoberta mútua de segredos, manias, defeitos, esquisitices... humanidades. Mas o fato notório de serem amizades íntimas, extremadas, sinceras e sem olhos para o contexto sexual das relações amorosas passionais torna tudo possível. Seres humanos que aceitam integralmente outros seres humanos e se completam nos vícios e nas qualidades administrados com equilíbrio, civilidade, afeto e compreensão sem cobrança de satisfações descontextualizadas e qualquer sentimento adicional de posse ou distorções e temores comuns das relações em redor.

E é claro que as amizades dessa natureza têm que ser mesmo raras. Seletas. Escolhidas com o coração desarmado e o corpo neutro. Caso saiamos pelo mundo acolhendo, distribuindo e propagando indiscriminadamente algo tão grandioso, profundo e ao mesmo tempo tão facilmente confundível nas mentalidades despreparadas, tais relações tendem a se tornar vulgares e promíscuas. Trata-se de algo, por si só, completamente secreto, íntimo, a dois, pois qualquer intromissão atuará como bactéria mortal. Virá carregada de julgamentos e avisos tendenciosos, sempre muito eficientes. No fim das contas, trata-se de uma dádiva marginal para quem – e esse quem é a maioria – se sente na obrigação de bater continência constante para os ambientes de convivências diversas e para os machistas de todos os gêneros.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 20/04/2018
Código do texto: T6314477
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