Crônica aos lábios.

Quem nunca enxergou lábios, nunca se apercebeu do paraíso. Neles posso padecer ou me sublevar. É afirmativo o deslumbramento que há nos lábios. Claro que, por uma questão de gênero, me atenho aos lábios femininos. Por eles, vejo que há investimentos bilionários para que estes sejam desnudados ou ainda mais realçados – como se precisassem de realce. Decidi me soltar e caminhar despretensiosamente pelas ruas da cidade apenas para me assegurar de que o que penso sobre lábios está certo. Quando cheguei à cidade, o meu relógio já pontuava quase cinco da tarde. Era uma sexta-feira: dia de festejo para quem gosta de uma vida noturna; início de exposições, caças, solidão, perversão e descobrimentos. Caminhei até a praça, fiquei estrategicamente sentado de frente a uma loja de cosméticos: o entra e sai de mulheres era frenético! Dia de promoção dos utensílios de beleza sempre são atrativos... Decide-me por uma estratégia um tanto que inusitada: entrar naquele ambiente recheado de lábios embriagantes: finos, grossos, largos, estreitos, sensuais, extremamente sensuais, lindos, discretos, tímidos, ousados... Entrei e fui imediatamente abordado por uma mulher elegante e cheirosa, discretamente vestida e que prontamente me questionou sobre o que eu procurava. Expliquei que queria ver cores e tipos de batons: “Quais você pode me mostrar e me oferecer?” Expliquei-a que este batom serviria como adorno para lábios que nunca precisariam de adornos, pois que já eram perfeitos. Apenas uma desculpa para me manter naquele paraíso feminino! Eu não parava de desenhar com os olhos todos aqueles lábios reunidos em um mesmo ambiente! Êxtase! Foi quando eu ouvi: “Venha comigo, senhor!”. Em frente a um armário e quase que em um surto imediato, aquela mulher elegante disparou explicações sobre cores, texturas, ocasiões, cheiros e as infinitas possibilidades que estavam à minha total disposição. Pensei: “Mas... Eu queria só um batom!”. Ingenuidade a minha pensar que encontraria objetividade em um lugar tão plural e sobre algo tão improvável, inquietante e absurdamente belo como os lábios de uma mulher. Como seria possível encontrar singularidade em algo que, por essência, já está no plural? O que queria mesmo era observar a sensualidade que estava viva bem ali na minha frente: uma representação ilimitada de variações múltiplas de lubricidade. Vi batons de todos os tipos e formas e ouvi explicações que nem os Químicos mais renomados poderiam entender em um estalar de dedos. Lá, vi lábios de todos os tipos de formas: estava em órbita! Embriagantes cenas de provas de cores e texturas: realces estonteantes de desejos que figuravam vivos a volúpia na minha mente. Por vezes, fui tomado por desejos subversivos que visavam apenas o amparo de um queixo à mão, para que eu mesmo passasse batons nos lábios que desejavam ainda mais relevância: bordas de mucosa nobre. Eu ficaria horas e dias naquele ambiente pertinaz. De tudo que vi, desejei por um instante, ser plural para que um pouco de mim fosse espalhado em cada batom comprado. Só assim estaria completo, espalhando-me por inteiro, enriquecendo sorrisos, trazendo discrição aos que precisam e altivez aos lábios que acham que precisam de destaque. Como não posso ser plural, contentei-me em comprar apenas um batom e sair do meu paraíso sendo eu mesmo singular, mantendo meus subversivos olhos atentos aos pilosos lábios femininos que me iluminam – suavemente – com o passar dos dias.

Carlos Maciel CJMaciel
Enviado por Carlos Maciel CJMaciel em 20/06/2018
Reeditado em 20/06/2018
Código do texto: T6369494
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