Por que a arte é uma maldição

Lembro-me de que a minha mãe desenhava. Nos seus cadernos de escola, guardados por muito, havia ilustrações para tudo. E uma letra bonita. Uma vez, quando muito pequeno, pedi a ela que desenhasse uma mulher tomando chimarrão. Automaticamente, ela pegou o meu caderno, desenhou e pintou uma mulher com roupa muito próxima a uma farda tomando chimarrão sentada com pernas cruzadas feito um homem (vinha de suas vivências a educação ríspida e o exército próximo ao colégio em que estudou). Ela não deve lembrar desse fato, eu deveria ter uns seis, sete anos à época. Mas aquele desenho ficou na minha memória para sempre desenhado. Ela, além do mais, no colégio das irmãs, como ela diz, em Francisco Beltrão, pegou o ofício de cortar cabelos, também autodidata, e tocar violão.

Minha irmã trouxe à vida também ela um talento incontestável. Sem jamais ter estudado desenho, fazia ilustrações, trabalhava depois com vários lápis, com giz e, mais tarde ainda, tinta, além de trabalhar com restauração de móveis, sempre exímia (e são decoradoras, ela e minha mãe, inatas). Meu irmão mais velho, com dois anos de diferença de mim, enveredou para a música, tocando instrumentos, e para a marcenaria, projetando móveis belíssimos nas suas horas vagas. Nenhum deles nasceu em meio artístico efetivo, mas foram fazendo, mexendo, arquitetando coisas...

Eu, por minha vez, desde criança estava às voltas com desenhos. Lá pelo início da minha adolescência, resolvi fazer um curso de desenho artístico pelo Instituto Universal Brasileiro, à distância, via correio (internet chegou-nos muito depois). Logo, resolvi também que queria tocar teclado. Guardei o dinheiro que podia trabalhando desde muito cedo com meu pai e, com a ajuda de minha mãe, comprei o teclado. Comprei umas revistas na banca, além do mais, e já em seguida estava tocando e lendo partituras musicais. Nunca fui exímio, nem no teclado nem no contrabaixo, porque não quis me dedicar. Escrevia canções e arranhava-as também no violão, mas percebia que ali não teria futuro. Também lá pelos quinze anos, comecei a fazer teatro na igreja. Depois, comecei a escrever as peças e a dirigir nossos pequenos espetáculos. Aí entendi que meu negócio era mesmo escrever. E interpretar no palco. E lia os poetas e queria ser também poeta. Além do mais, escrevia uns contos. E escrevia textos filosóficos, porque amava também ler os filósofos.

Tudo isso foi me vindo como uma necessidade. Nunca, contanto, como coisas planejadas ou com intenções maiores. As minhas investidas em relação a conquistar espaço com as artes nunca me deram grande retorno. Como disse, na música, eu teria de ter muito mais dedicação, por isso desisti da área. No teatro, fazíamos nossos sucessos sim, mas acabou que ainda hoje criamos esporadicamente uma peça ou outra, em momentos, ocasiões ou grupos diferentes, sem contanto ter jamais grande respeito além do público querido que assiste às representações e aplaude, muita vez em pé. Espaço para trabalhar com as artes cênicas não me cederiam, nem para fazer apresentações muitas vezes: Os lugares pequenos não dão o mínimo valor, os lugares de algum conceito não se interessam por pequenos produtores amadores como eu. Os textos teatrais que escrevi acabaram sendo montados em outros lugares, mas estão por ali, por aqui, meramente arquivados. Os meus desenhos com giz pastel e lápis diversos em nada têm ou tiveram destaque. Uma ou outra exposição que consegui com muito custo apenas. Os meus poemas, leio-os no Youtube e publico-os no site Recanto das Letras e no Facebook, entretanto são parcamente lidos ou ouvidos. Chamei somente a atenção de um único crítico, que ainda hoje me entusiasma a escrever, embora não tenha mais contato com ele: Jô Siqueira. Os concursos de livros de poesia ou de conto, de que muita vez participei, nunca trouxeram bons resultados. Ou seja, tenho calhamaços de trabalhos escritos, desenhados ou representados, porém sem qualquer função.

Talvez esteja certo o que sempre disse meu pai: “Pra que fazer isso, só pra trabalhar e não ganhar nada em troca!”, mais ou menos isso. Minha mãe já não, fica lá, costurando as roupas para minhas peças, postando meus poemas no status do Whatsapp, orgulhosa de tudo. Meus irmãos também, estão sempre a apoiar para que aconteça. Mas por quê? Porque talvez tenham a mesmíssima necessidade que eu tenho, que não é só uma necessidade, senão uma maldição.

Às vezes, numa rachadura do solo, eu vejo uma imagem, uma figura, e dessa figura nasce uma obra visual em minha mente. Se não posso parar e pô-la no papel já, carrego-a por dias e dias incansavelmente na minha cabeça. Ela vai para todos os lugares e persiste até que eu trace o seu rascunho e desenvolva-lhe algumas cores, belas ou ruins que sejam. Os poemas me perturbam bastante. Ora ou outra nascem na minha cabeça já metrificados. E fico pasmo ao ver como os primeiros versos de um soneto decassílabo podem deitar-se no papel em perfeita métrica sem qualquer esforço meu. Como se se ditassem assim. Os meus contos duram mais. Eles são capazes de modificar o espaço ao meu redor e de ficar grafados na minha memória. Às vezes, na minha incapacidade de prosa artística, ficam ali dez anos, como é o caso de um que terminei por esses dias, que não descansou desde o ano de 2006, 2007. Tentei escrevê-lo várias vezes e de maneiras diversas, até como romance. Porém, foi agora, há poucos dias, que consegui terminá-lo como conto definitivamente.

Portanto, não sei que valor tem isso em que insisto, mas diria, na verdade, que é independente da minha vontade. Falo em parar, todavia, no instante seguinte, estou sem querer pensando em algo novo. E isso não é exclusividade minha. Essa é a realidade de muitos artistas no Brasil e no mundo, que, como eu, criam sem porquê.

Com isso, não quero aqui chamar a atenção de ninguém em relação à falta de valorização do meio, não no momento, mesmo porque possa não haver valor ali. Pode ser que a minha arte seja só uma brincadeira, a que me impele a vida, sem maiores recompensas ou propósitos. O que quero é comentar-lhes como, para além de um prazer, a arte é tal qual uma maldição encravada no sangue de quem a faz sua vida, de quem não pode fugir dela, em momento algum. Como ela transcende toda a necessidade e existe por si, como se fôssemos por ela direcionados, dela escravos. E como sem ela não saberíamos viver.

Uma maldição, minada de decepções, mas, sobretudo, a nós, única alegria.