A TERRA

A TERRA

João era Alagoano. Vivia sonhando em obter uma terra, pequena que fosse, mas o suficiente que desse pra ele trabalhar nela com pequenas plantações e criações. No estado nordestino que nasceu e cresceu, territorialmente pequeno, não havia terra disponível pra quem quisesse obte-la através de doação do Governo, pelo sistema de Reforma Agrária.

Filho de trabalhadores rurais, de família numerosa, seus pais foram criando os filhos, morando em fazendas, latifúndios, ganhando a vida, ora na empreita, ora na diária, que mal dava pra sustentar tanta gente, porque gente pobre gosta de fazer muito filho.

João foi crescendo junto com os irmãos e aprendendo com os pais, o único ofício que sabiam ensinar aos filhos: trabalhar no campo, na roça, pegar na enxada, no facão, no machado, plantar, criar, não pra eles, mas pro patrão, que os pagava pelo serviço prestado, e só oferecia uma simples casa pra morarem, pois até o que eles precisavam de mantimentos, eram comprados na mercearia da propriedade, a preço alto, e quando chegava no fim do mes, na hora de fazer as contas, a maior parte do que tinham ganho com muito suor derramado, era abatida do que tinham comprado e consumido.

E desse modo eles iam vivendo, de fazenda em fazenda, de latifúndio em latifúndio, sujeitando-se a um trabalho escravo, sem ver a cor do dinheiro pra comprar onde quisessem, e mesmo assim, davam graças a Deus, porque pelo menos, trabalhavam e comiam, pra não morrerem de fome.

João cresceu. Ficou adulto. Não esqueceu do sonho de obter a sua terra. A esperança crescia em seu coração desejoso, em sua consciência inconformada. Não queria acabar os seus dias de vida como os seus pais, conformados com aquela condição de vida miserável.

Certo dia, ele ouviu no rádio, que um movimento social estava reunindo gente em vários estados pra ficar debaixo de lona em beira de estrada, perto de fazendas abandonadas, latifúndios improdutivos, cujo objetivo era pressionar o Incra em promover a Reforma Agrária, através da desapropriação legal das referidas terras.

Sim, o Brasil é muito grande, pensava João.Tem dimensões continentais. Terra aqui pra se trabalhar não falta. O que falta é a boa vontade do Governo em liberar terra pro pobre. Ouvindo aquela boa notícia, renasceu em João a esperança de realmente conseguir realizar o seu grande sonho: obter a terra que tanto queria. Deixar de trabalhar pros outros pra ser patrão. Não um patrão grã-fino, mas um patrão modesto, contanto que fosse dono de seu próprio negócio.

Escolheu a Bahia, o maior estado da região nordestina do país, pra se aventurar na busca de seu sonho. E certamente, com a ajuda de Deus e de sua fé e perseverança, haveria de o realizar. Ainda não tinha constituído família, e se tivesse, ia primeiro só, depois, se desse certo, voltaria pra buscá-la. Conversou com os seus pais. Explicou-lhes do seu antigo sonho e objetivo de vida. Não fizeram nenhuma objeção.

Ele já era adulto. Podia decidir o que lhe fosse melhor pro seu futuro de vida. Tinha um pouco de dinheiro guardado. Mal dava pra pagar a passagem e comer alguma coisa. Sabia que no início seria difícil, árdua, a sua jornada, mas ele venceria. Guardava no íntimo essa convicção. Entendia que Deus e a sua força interior o levariam ao êxito pretendido. Se despediu dos pais, dos irmãos e partiu.

Na decada de 80, a seca e a vassoura-de-brucha, doença endêmica do cacau, dizimou a lavoura cacaueira no Sul da Bahia. Na maioria das fazendas, a produtividade foi reduzida quase a zero. Os fazendeiros empobreceram. As duas cidades mais relevantes do sul da Bahia, Ilhéus e Itabuna, sem os frutos de ouro, produto principal que alavancava a economia sulbaiana, e igualmente contribuía com a economia do estado, sofreram bastante, sentiram o impacto negativo: no comércio, na prestação de serviços, no turismo, e até no êxodo de trabalhadores rurais desempregados, que se aglomeraram em inúmeras favelas e recém-construidas na periferia das duas belas e destacadas cidades sulbaianas.

Muitos fazendeiros, desolados, desmotivados, decepcionados, venderam as propriedades por um preço inferior ao que valiam, sobretudo ao Incra, pelo processo de desapropriação legal, posto que, os latifúndios se tornaram improdutivos. Enquanto o destino reservava tristeza e desesperança pra uns, reservava alegria e esperança pra outros.

João chegou quase amanhecendo em Itabuna. Antes de sair da rodoviária,que ficava na região central urbana, procurou se informar onde se situava o sindicato dos trabalhadores rurais. Sem conhecer a cidade, foi andando e indagando aos transeuntes, até chegar no local desejado.

Expondo os seus objetivos, foi bem recebido pelos sindicalistas, incentivando-o em seguir em frente, numa luta social que estava apenas começando, mas tinha tudo pra dar certo, porque o momento sócio político favorecia aos chamados sem-terra, que poderiam adquiri-la pela Reforma Agrária.

Para tanto, o método utilizado era de reunir um maior número de pessoas pelo sistema de acampamento, próximo a determinada fazenda a ser desapropriada, improvisando casas toscas de madeira cobertas com lonas de plástico, esperando que a desapropriação de tal latifúndio fosse efetivado.

Alegre, esperançoso e decidido a enfrentar a luta, João, agora um sem-terra, tomou café, descansou e juntos com outros sem-terra, foram levados num caminhão a um acampamento que ficava às margens de uma estrada vicinal, perto do distrito de Banco Central, pertencente ao município de Ilhéus. Com essa remessa de gente destinada a ser assentada, o acampamento, por assim dizer, se completou, o suficiente pra ser distribuído em duas propriedades, num total de 80 assentados ou famílias.

Haviam duas propriedades próximas do acampamento, programadas pelo Incra pra serem desapropriadas. Uma de 1000 hectares, na qual seriam assentadas 50 famílias; e outra de 600 hectares, na qual 30 famílias seriam assentadas. João estava na relação das 50 famílias. O processo de demarcação e divisão dos lotes foi efetuado, e na área de 1000 hectares, coube 20 hectares pra cada assentado. Sendo que, uma parte da área seria pra reserva florestal; outra, dividida em quadras, seria pra ser derrubada, pra que cada assentado pudesse trabalhar com pequenas plantações e pequenas criações; as roças de cacau, afetadas pela vassoura-de-bruxa, também foram divididas entre os assentados, cabendo a cada um, a tarefa de cuidar delas, zelando dos pés de cacau, tirando os galhos e frutos afetados pela doença e queimando-os num local distante, sendo esse, até então, a única forma de combater a proliferação do fungo endêmico.

E por fim, a área que abrangia a sede, onde ficavam, além da casa-sede, as casas dos trabalhadores, as barcaças com estufas e secadores, casa-de-farinha, depósito de armazenamento das sacas de cacau, etc. Por enquanto, todos morariam no espaço da sede, espalhados nas casas dos trabalhadores. Depois, segundo o projeto de assentamento, seriam construídas novas casas no sistema de agrovilas, escola, e liberação de recursos pra compra de mantimentos e outras previsões dos assentados, como um incentivo do Governo Federal, assistindo socialmente aquelas famílias que iam alí morar, trabalhar, produzir dignamente o seu sustento de vida.

Toda essa infra-estrutura foi previamente planejada e executada na propriedade denominada Ressurreição, que finalmente, recebeu as primeiras 50 famílias assentadas, após um ano e seis meses de estafante e paciente espera. Seis meses após, a outra propriedade recebeu as outras 30 famílias. João, que logo foi apelidado pelos colegas de Alagoano, estava bem feliz. Seu sonho, por tanto tempo almejado, se realizava. Ligou pros pais, lhes dizendo que as coisas deram certo. Que ele, apesar de ser um sem-terra, ligado ao movimento social, já estava assentado, vivendo numa comunidade agrária chamada Ressurreição.

Decorridos seis meses de inauguração do Assentamento Ressurreição, alguns conflitos surgiram na comunidade, e foram, aos poucos, resolvidos; exceto um, de difícil solução,e que, infelizmente, o pior ocorreu. No projeto de divisão dos lotes, segundo a topografia do terreno, bem servido de córregos, riachos, e fontes de águas potáveis e cristalinas, vários desses cursos d'água, ora passavam por dentro dos lotes, ora os margeavam; e uns poucos, tinham apenas pequenas fontes que, embora a água não fosse corrente, podiam se servir da água minada que brotava em abundância do solo fértil.

No lote de João, havia apenas uma fonte, da qual ele se servia para as diversas precisões diárias que dependesse de água. Só que, para chegar no seu lote (cada lote era de 04 hectares), tinha que seguir num caminho que passava por dentro do lote do vizinho, chamado Djalma; e não havia outro caminho, senão aquele, pelo menos pra João, ter acesso ao seu lote, que já existia antes da área bser loteada, que se iniciava embaixo nas roças de cacau e subia cortando a mata até a divisa geral da propriedade.

Assim que ambos começaram a trabalhar nos respectivos lotes, vinham inclusive juntos todos os dias de manhã cedo e só voltavam de tarde. Devido a essa aproximação, nasceram entre eles uma boa e saudável amizade. Os dias e meses foram passando, e cada um foi beneficiando o seu lote do seu modo. Cuidaram em plantar, em criar, e a fazer cerca em todo o limite. Apesar dos lotes serem comunitários e muitas tarefas serem feitas no sistema de mutirão, não se podia entrar, invadir o lote alheio sem a presença do dono. Essa e outras regras foram decididas em assembléia.

João sabia que, para chegar no seu lote, tinha que passar por dentro do lote de Djalma. Como eram bons amigos, achava que não haveria nenhum problema; que o amigo não iria se importar com a sua passagem por dentro do lote dele, mesmo na sua ausência. Um certo dia, Djalma acordou, tomou café e foi mais cedo pro lote. Quando João chegou mais tarde, encontrou o amigo próximo a cancela de acesso ao lote. Saudou-o, que lhe respondeu friamente. Depois se lamentou, dizendo que ele podia ter-lhe esperado. Djalma se desculpou, alegando que queria adiantar um serviço. Conversaram um pouco, acerca dos serviços do dia, e quando João ia seguindo viagem pro seu lote, ouviu de Djalma o que jamais pensou ouvir:

- João, espere um momento.

- Sim, Djalma, quer me dizer mais alguma coisa?

- Sei que você não vai gostar. Somos bons amigos. Mas não quero que nem você nem ninguém passe mais por dentro do meu lote.

Boquiaberto, João não acreditou no que ouviu.

- O que você está me dizendo, Djalma?!

- É isto mesmo o que você ouviu.

- E agora, o que faço, pra ter acesso ao meu lote? Esse caminho, apesar de passar aqui por dentro, já existia antes da área ser loteada, e depois, são lotes comunitários, ora trabalhamos individualmente em nossos lotes, ora trabalhamos em mutirão, um servindo ao outro. Então, não vejo razão pra se fazer um outro caminho de acesso bem distante, se existe um caminho aqui tão perto, e que não vai lhe incomodar em nada; até porque, eu sempre passo por aqui, vindo com você todos os dias; e hoje, não sei porque, não sei por qual motivo, você veio mais cedo, justo pra me dizer isso?!

- Há dias atrás, pensei em lhe falar, mas decidi lhe falar hoje. - disse Djalma, sem lhe olhar nos olhos.

- Djalma, meu bom amigo, aliás, nem sei se ainda posso lhe considerar como um bom amigo, não consigo crer nessa decisão sua sem cabimento. Não é porque existe a regra de nenhum de nós entrar ou invadir o lote alheio sem permissão ou sem a presença do dono do lote, que não haja nenhuma exceção, como no meu caso.

- Acho que, se você está mesmo decidido em me negar a passagem, não tenho outra opção, a não ser levar ao conhecimento da direção do assentamento, pra que esta situação absurda entre nós, seja decidida em assembléia. Enquanto não se decidir algo que seja bom pros dois, como estava sendo até a instantes atrás, não virei mais aqui; vou cuidar de minha roça de cacau, que tem muita vassoura-de-bruxa pra ser tirada dos pés afetados.

A direção do assentamento fez duas assembléias pra decidir o impasse entre João e Djalma, sem nada resolver de concreto. Nenhum assentado quis sair de seu lote, trocando-o com um ou com outro; e todos achavam um absurdo aquela situação egoísta da parte de Djalma, que se mantinha irredutível, apoiado na regra do estatuto, que não permitia o acesso a qualquer lote sem a presença do dono.

A regra também servia pras roças de cacau, mas ainda não havia nenhum conflito nesse sentido. E se tivesse que haver, seria somente da parte de Djalma, com a sua exigência extrema. Diante de tamanho conflito de difícil solução, definiu-se que, o mais conveniente, era transferir ou um ou outro pra outro assentamento. Houve mais uma assembléia pra que todos votassem, e quando a urna foi aberta, a maioria votou pela transferência de Djalma.

Pronto. Estava decidido o impasse. Djalma, não tendo outra alternativa, teve que aceitar a decisão da maioria. A demora dele se mudar dali, era achar alguém noutro assentamento que quisesse vir pro seu lugar. E quando isso ocorresse, dentro de um tempo mais breve possível, ele teria que se adaptar pra onde fosse transferido, porque se gerasse um novo conflito, seria expulso por justa causa, ou seja, por incapacidade de caráter pra conviver em qualquer comunidade agrária.

Após o conflito resolvido, João não voltou mais ao seu lote. Continuou trabalhando em sua roça de cacau. Djalma, por sua vez, sabendo que ia ser transferido, se desinteressou e também foi aconselhado pela direção do assentamento, a não fazer mais nenhuma atividade que lhe fosse produtiva. Virou um ocioso. Viveu dias incertos e angustiantes naquela comunidade que lhe pareceu tão boa, agradável, adequada pra ele constituir família, a sustentar e viver dignamente; mas nem tudo estava perdido; certamente em outro assentamento, não cometeria os mesmos erros, e tudo daria certo.

Sem que Djalma percebesse, João estava de olho nele. Mesmo a decisão lhe sendo favorável, se sentia intranquilo, diante da presença no assentamento, daquele que pensava ser um bom amigo, mas não era. Não o tinha como um inimigo, mas algo lhe dizia que Djalma queria se vingar, lhe fazendo algum mal.

Certo fim de tarde, João voltava de sua roça de cacau. Era inverno. O dia sendo mais curto, a noite chegava mais cedo. Andava devagar, cansado e pensativo, pelo estreito caminho entre as roças quase as escuras; antes de sair delas e seguir pela pastaria até chegar na sede, de repente, Djalma pulou em sua frente com um machado nas mãos; de um golpe quis o derrubar mas não conseguiu; João foi mais rápido, se saiu da linha do golpe, arrastou o facão,e os dois entraram em luta; mais ágil, João se saiu bem mais uma vez e deu-lhe três golpes de facão certeiros; Djalma caiu todo ensanguentado, sentindo a agonia da morte. Foi então que, João, pegando o machado no chao, mesmo diante dos olhos esbugalhados de Djalma, desferiu-lhe dois golpes no pescoço, separando a cabeça do corpo.

Quando João chegou na sede já tinha anoitecido. Agiu como se nada tivesse ocorrido. Tomou banho. Jantou. Tomou café. Fumou um cigarro de palha. Arrumou algumas coisas na sacola. Deitou, mas não conseguiu dormir. Tirou só alguns cochilos, mesclados com o pesadelo de ter matado quem queria lhe matar. Antes do amanhecer, abandonou o assentamento. O corpo de Djalma foi achado na roça. Deduziram então, que João o matou de um jeito tão brutal; quando a policia chegou no assentamento, João já tinha fugido, e ninguém soube informar pra onde ele foi.

Escritor Adilson Fontoura

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 10/02/2019
Código do texto: T6571853
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