Crônicas de Brandão
Publicações anteriores desta Série:
   Crônicas de Brandão - Introdução
   Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonet
e

2 – O Brado Retumbante
 
       A fluência com que Brandão se comunicava na língua inglesa e o conhecimento que tinha da cultura americana eram notáveis. Os americanos com quem convivíamos se surpreendiam quando lhes era informada a nacionalidade brasileira de Brandão. 

       Três fatores contribuíam. O primeiro era o dom natural da verbalização bem estruturada e gramaticalmente perfeita com que sempre se expressava em seu idioma de origem, qualidades retóricas que, quando as temos, normalmente as replicamos em qualquer novo idioma que aprendemos.

        O segundo foi um programa de intercâmbio cultural, de um ano, de que participara, nos Estados Unidos, aos dezesseis anos.

       O terceiro, a meu ver o mais importante, era a força, a frequência vocal ideal, o timbre suave, a dicção perfeita e a impostação de voz marcante com que naturalmente verbalizava harmonicamente seus argumentos e suas histórias.

       O conjunto destes fatores era também a grande motivação para a eloquência e a loquacidade com que Brandão se comunicava. Ele sabia que as pessoas gostavam de ouvi-lo. Brandão roubava a cena em qualquer ambiente onde conversar ou simplesmente falar fosse permitido. Mas ninguém se importava. Ele tinha as credenciais para isso.

       Mas, naquela manhã, quando o grupo se reuniu pela primeira vez em sala de aula, antes do evento constrangedor no restaurante, eu ainda não conhecia Brandão. E foi ali, e naquele momento, que o grupo de alunos estrangeiros, no qual eu me incluía, a maioria com um Inglês sofrível e quase nenhum conhecimento da cultura local, presenciou pela primeira vez as qualidades verbais de Brandão.

       As assertivas sobre os costumes sociais dos americanos e o comportamento correspondente que esperavam uns dos outros eram entremeadas pelos palestrantes com perguntas sobre costumes análogos existentes nos países de origem de cada integrante do grupo. 

       
A interação grupo-palestrantes se dava com evidente desvantagem para o grupo que, por mais boa vontade que tivesse, não conseguia se expressar de forma a manter uma conversação leve e fluida. As frases eram truncadas, cheia de erros, o que obrigava os palestrantes a colocar muitas palavras na boca de alguns para que pudessem concluir seus pensamentos.       
       Eis que, de repente, um vozeirão firme, convicto, fluente, intimidador emergiu do centro da sala para interpretar uma questão que o palestrante estava pondo em discussão. Foram quase dez minutos de um discurso eloquente que, com clareza e riqueza de detalhes expôs, majestosamente, as razões de muitos julgamentos precipitados que os americanos faziam do comportamento de cidadãos latinos, na maioria das vezes bem-intencionados.


       Se a consciência da precariedade em que a condição de estrangeiro me colocava já me fazia sentir tão inferior quanto um patinho feio, o brado retumbante de afinidade com o país anfitrião, em inglês perfeito, vindo de Brandão, um brasileiro como eu, me transformou em uma pulga.  E eu não era a única pulga no recinto. Pareceu-me que era este mesmo o intento daquele jovem de vinte e cinco anos: o de agigantar-se sobre os demais, projetar seu ego para atrair a atenção do grupo para seus dotes pessoais. Foi o que eu lhe disse tempos depois, quando a força de nossa amizade já me autorizava 

       
Mas não. Brandão apenas exercia seus dotes com galhardia e naturalidade. Para parecer humilde teria que recolher-se, negar a si próprio uma dádiva que durante a vida lhe foi tão útil para servir a tantas pessoas.