Publicações anteriores desta série: (pesquise pelo nome do autor)

  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!
  Crônicas de Brandão - 6) Perseguindo a Polícia
  Crônicas de Brandão - 7) Acabou em Pizza! 

Crônicas de Brandão

8 – Louça suja se lava em casa!
 
       Um dos brasileiros do grupo de alunos do Curso de Administração Internacional da Universidade da Carolina do Sul, naquele verão, assim como eu, tinha levado esposa e filhos, ainda pequenos, para participarem da experiência no exterior.
       
       A convivência com Márcio era extremamente agradável. Bom rapaz, bem humorado, amigo de verdade. Sua esposa, no entanto, muito insegura, embora se esforçasse, não conseguia evitar o ciúme que tinha dos amigos de Márcio. Brandão era o primeiro da lista. Muito participativo, acabava por roubar a cena onde estivesse. E, muito frequentemente, estava na casa de Márcio, assim como eu.

       
       Brandão, ao contrário, muito seguro de si, não se deixava incomodar com a forma ostensiva como Cláudia, a esposa de Márcio, manifestava seu ciúme. Sempre a tratava com a mesma amabilidade e simpatia que devotava a qualquer pessoa. Mas isso a irritava ainda mais. Cláudia não sabia o que fazer para que Brandão revelasse alguma reação à sua clara demonstração de que ele não era bem-vindo.


       O dia a dia no Campus era de muito trabalho, entre aulas, muita leitura, pesquisas exaustivas e outros afazeres. Com os colegas mais chegados, a convivência era predominantemente em razão da faina acadêmica. Não sobrava muito tempo para o lazer, quer com a família ou entre os amigos.

       Márcio sofria muito ao tentar dividir seu escasso tempo livre entre a família e os amigos. De um lado, não queria dar motivos para a esposa, de outro, precisava de tempo com os amigos para aliviar seu estresse, cujas causas incluíam a insegurança da esposa e suas consequências no seu relacionamento com ela.   
       
       Brandão e eu frequentávamos a casa de Márcio, tanto por conta dos afazeres acadêmicos como para usufruir, descontraidamente, nos poucos momentos de folga, da amizade que brotara entre nós.


       Foi num desses dias. Chegamos logo depois do almoço. Márcio estava sozinho, entretido com sua nova calculadora HP, comprada para trazer maior eficiência na resolução de questões que requeriam cálculos complexos. Cláudia fora às compras, deixando uma pia lotada de pratos, panelas e talheres utilizados na recente refeição. Era constrangedor para Márcio que a esposa não tivesse cuidado da louça do almoço antes de sair.

       Nos anos setenta, não era parte da cultura, entre os brasileiros, que os homens fossem também responsáveis pelos cuidados domésticos, principalmente quando envolvidos em projetos da envergadura de um mestrado no exterior. Era normal a mulher sentir-se responsável por este tipo de tarefa. Mais que isso, era normal a mulher sentir-se culpada ou ofendida se lhe fosse atribuída negligência nas tarefas domésticos.


       Cláudia era parte desta cultura. Saíra deixando de cumprir uma tarefa que, em seu juízo, lhe competia. Mas sua vontade, enfraquecida pela insegurança, não lhe deu forças para cumpri-la. E, por isso sentia-se culpada.

       Esta hipótese, resultado da análise cultural e psicológica que hoje faço da situação, vivida há mais de quarenta anos, não poderia ser objeto de reflexão pelos três jóvens mosqueteiros naquele dia em Columbia. Em verdade, a linha de ação tomada não manteve qualquer correlação com tal ponderação.

       Brandão, bem-intencionado, e querendo angariar a simpatia de Cláudia, que lhe garantisse a preservação de sua amizade com Márcio, tomou a iniciativa. Arregaçou as mangas e debruçou-se sobre aquela pia entupida de apetrechos engordurados e apropriados pelos resíduos do que já fora o almoço. Márcio pressentiu o desastre: “Não faça isso, eu conheço a Cláudia, ela não vai suportar saber que você, justo você, profanou a cozinha dela.”
       Brandão então, contradizendo Márcio, discursou, enquanto ensaboava a louça, sobre o quanto sua magnanimidade iria reverter em benefício da harmonia entre todos. Cláudia seria poupada de uma fadiga adicional à que já teria se submetido ao fazer compras. Ele, Brandão, seria reconhecido como alguém que não só se preocupava com o bem-estar dela, mas, acima de tudo, demonstrava isso com seu próprio sacrifício. E, o que realmente importava, Márcio seria liberado pela esposa para curtir a amizade de seu amigo Brandão, bondoso e magnânimo.


       Em meio ao discurso contundente de Brandão, e já no avançado da faxina na cozinha, eis que Cláudia irrompe porta adentro. Escondida atrás de sacolas e pacotes, só deu para ver seu rosto contrair-se avermelhado, ao vislumbrar Brandão, de avental, debruçado sobre a pia, a mão ensaboada.

       - O que você está fazendo! - berrou Cláudia, deixando cair pacotes e sacolas pela sala, sentindo seu orgulho ferido pela crítica de Brandão - não verbalizada, mas declarada com veemência tácita - ao desleixo pelo qual se sentia culpada.


       - Saia da minha casa! Não admito que você mexa nas minhas coisas! –, explodiu Cláudia, para meu assombro e para desespero de Márcio. Ele sabia que aquela cena ia render vários dias de tensão doméstica.

       Brandão, no entanto, não se deixou abater. Com sua fleuma inabalável voltou-se para Cláudia:

       - Minha querida, só estava querendo ajudar...não tinha a intenção...

       - Não quero saber sua intenção! E não me chame de querida! Saia!!

       Saímos, Brandão e eu.  Márcio ficou, para tentar aplacar os efeitos da explosão de Cláudia que, segundo soubemos depois, durou mais algumas horas.

       Nos anos que se seguiram, mesmo muito depois de Columbia, a hostilidade jamais arrefeceu; pelo contrário, recrudesceu com o estreitamento da amizade de Márcio com Brandão, embora separados por mais de mil quilômetros. Mas era uma hostilidade de mão única. Brandão, sempre morando em Brasília, trataria Cláudia como sempre a tratou:

       - Minha querida, peça para o Márcio me ligar; estou planejando uma visita a vocês nos próximos feriados.

       Pobre Márcio!