Tempero baiano

     1. Um casal amigo, de plagas distantes, esteve em Salvador, faz pouco menos de uma semana. Saímos para jantar. Ela e ele fizeram uma única exigência: que os levassem, de preferência, a um restaurante de comida baiana. Achei o pedido mais do que justo.
     
2. Fomos, então, a um dos melhores restaurantes de comida baiana de Salvador. Não cito o nome desse restaurante para não ofender restaurantes similares, tão bons quanto o por mim escolhido. 
     Sentámo-nos. Pratos maravilhosos foram servidos, depois da casquinha de siri, acarajé e abará trazidos à mesa como entrada. 
     
3. Após o jantar, o casal amigo fez rasgados elogios ao tempero baiano e me pediu que lhe falasse sobre outras guloseimas, além das moquecas de camarão e de siri que havíamos comido. 
     Como não sou baiano, deixei que Ivone, nascida e criada em Salvador - "sou soteropolitana", costuma dizer - falasse. E ela o fez, com a precisão e o orgulho de uma baiana legítima.
     
4. Despedi-me do casal , por volta de meia noite, no lobby de um hotel salvadorense, muito chique, e com irrepreensivel vista pro mar. Ainda no carro, voltando para casa, na Pituba, lembrei-me de o "Breviário da Bahia", um extraordinário livro do escritor baiano Afrânio Peixoto.
     Sobre Júlio Afrânio Peixoto, para os que não o conhecem ou dele se esqueceram, no próximo seguimento, farei um resumo resumido (?) de sua rica biografia. 
     
5. Prometi e cumpro. Afrânio - pedindo perdão por tratá-lo com tanta intimidade -  é um dos mais respeitados intelectuais da Bahia; e do Brasil, também. Ele nasceu na cidade de Lençóis, que chamo de a capital da Chapada Diamantina, no dia 17 de dezembro de 1876. 
     A Chapada Diamantina é um dos recantos mais queridos do Estado da Bahia. Para muitos, é um lugar sagrado; um lugar místico; um pedacinho do céu. É tão silenciosa que, segundo os mais empolgados, "ouve-se a voz de Deus". Conheço.
     
6. Afrânio Peixoto , além de escritor, foi médico legista, político, ensaísta, crítico literário, historiador e romancista.
     Seus livros mais conhecidos: "Bugrinha", "Rosa Mística", "A Esfinge", "Lufada sinistra" e "Maria Bonita".
     Na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, onde me formei, encontrei nos seus livros, de excelente conteúdo, as primeiras lições de Medicina Legal. 
     
7. Há dois encantadores livros do saudoso mestre Afrânio que, há anos, deixaram de ser editados. São eles: "Breviário da Bahia" e "Livro de Horas".
     A criminosa ausência desses dois livros nas livrarias, priva os baianos mais novos de conhecerem o que, sem sombra de dúvidas, de melhor tem a sua Bahia.
     Afrânio comenta, com desenvoltura e erudição, a verdadeira história do seu glorioso torrão. E com muito amor.
     
8. Fiquemos, hoje, com um pouquinho do "Breviário da Bahia". Percorrendo-o, às folhas tais e tais, Afrânio tece saborosos comentários sobre a culinária da Boa Terra.
     Ingressa na cozinha baiana para dizer, segundo ele, "o que só a Bahia tem"...E sem pestanejar, em seguida, responde: "Comidas, meu Santo".
     
9. Mais do que enfático, sumamente vaidoso, ele prossegue: ..."só na Bahia há gosto em comer. Ou nas comidas".
     E tece apreciações, absolutamente pessoais, sobre todos os pratos da rica cozinha baiana, deixando seus leitores de/ou com água na boca. 
     
10. Alguns dos pratos citados e comentados pelo escritor de "Bugrinha": as moquecas de camarão, de siri mole, de peixe, geralmente robalos; as frigideiras, caruru, xim-xins, arroz de auçá, e o "sagrado" acarajé.
     E, no final, faz esta observação: pela comida baiana, "a gente é capaz de vender a alma ou trocá-la pelo prato...cheio" .
     
11. Mas adverte: "Não me chamem de guloso: disse Nosso Senhor que não era o que entra pela boca que faz mal, senão o que sai... Tenho apetite e não sou maldizente. Estou com o Senhor".
     
12. Amigo, na Bahia ninguém é considerado ou chamado de guloso. Porque comida boa, é "o que só a Bahia tem...", garante Afrânio. 
     Na Bahia, meu rei, o senhor pode comer à vontade; sem medo de pecar... Aqui, desde os tempos de Pedro Álvares Cabral, a Gula deixou de ser pecado...
     Se duvidar, até o Papa Francisco concorda comigo e com o mestre Júlio Afrânio Peixoto.
  


 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/05/2019
Reeditado em 11/05/2019
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