Publicações anteriores desta série: (pesquise pelo nome do autor)

  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!
  Crônicas de Brandão - 6) Perseguindo a Polícia
  Crônicas de Brandão - 7) Acabou em Pizza! 
  Crônicas de Brandão - 8) Louça Suja se Lava em Casa!

Crônicas de Brandão

9 - A Velhinha de Taubaté
 
      Nos anos 80, ainda no tempo do regime militar, Luiz Fernando Veríssimo criou a personagem “A Velhinha de Taubaté”, que deu origem ao seu livro do mesmo nome. Tratava-se de uma idosa senhora, fissurada nas propagandas oficiais da época, crente em absolutamente tudo, ao pé da letra, que representasse a fala oficial do governo e a quem os políticos respeitavam muito, para não perderem a credibilidade da única pessoa que ainda acreditava nos discursos oficiais.  Além do livro, várias crônicas foram depois escritas sobre a velhinha de Taubaté, que Verissimo fez morrer de desgosto, na época do mensalão, quando não havia mais cobertor do tamanho da realidade política brasileira.
     
       Quando penso em minha avó querida, não posso deixar de me lembrar da personagem de Veríssimo. Ela era a Velhinha; meu irmão e eu, a voz oficial do governo. O que quer que falássemos, seriamente, ela tomava como verdade. E nós, com a irreverencia própria dos jovens, tirávamos proveito disso para nos divertir as custas dela. Simulávamos conversas sérias sobre assuntos absurdos que normalmente a deixavam perplexa ou muito preocupada. Hoje, acho que a deveríamos ter tratado com mais respeito, mas na época era uma farra!


       Curiosamente, a Velhinha de Taubaté de Veríssimo surgiu no humor brasileiro muitos anos após a época em que minha avó, prematuramente, a protagonizava. Teria Veríssimo se inspirado nela?

       Quase dez anos antes do aparecimento público da respeitável senhora taubateana, Brandão e eu curtíamos a experiência americana. Nos poucos momentos de descanso que tínhamos da faina acadêmica, especialmente nos fins de semana, Brandao, solteiro na época, passava horas em minha casa. Nestas ocasiões, nossa afinidade transbordava na forma de brincadeiras inteligentes e irreverentes que, além de fazer passar nosso tempo de forma prazerosa, ainda iriam inundar de humor os relatos que delas faríamos a amigos e parentes por um longo futuro.

       Naquele dia, sozinhos na minha casa, resolvemos gravar uma fita cassete sobre minha vida em Columbia para enviar à minha família no Brasil. Era a maneira mais eficaz de que dispúnhamos na época para demonstrar, com certa precisão, a situação que eu, mulher e filhos vivíamos no exterior.

       Após uns dez minutos de gravação registrando coisas do cotidiano, descrevendo o local que eu habitava com minha família e outras curiosidades, a austeridade cedeu lugar à travessura. Resolvemos criar um cenário fictício, inusitado e absurdo, para avaliarmos o efeito que teria nas pessoas, antes de ser revelado como mero produto de nossa imaginação.

       Em meio à gravação, com o mesmo tom de veracidade na voz, expliquei que mantínhamos em casa uma área onde criávamos animais para consumo de ovos, leite e até mesmo para nosso lazer, como era o caso da égua Pandora. Simulei a presença de minha filha de seis anos no ambiente e, repentinamente, interrompi o que estava dizendo, em desespero, sem parar a gravação:

       -Adriana!! Não abra isso! Eles vão escapar! Não!! Não!! 
       
       Mas já era tarde. A porta do local onde os animais eram confinados foi aberta! E os animais saíram todos, latindo, miando, cacarejando, zurrando, mugindo, relinchando, grasnando...


       Brandao imitava todos eles. E o fazia com uma precisão que daria inveja aos legítimos protagonistas. Eu fazia os mais fáceis – gato, cachorro – junto com Brandao, apenas para mostrar simultaneidade e confusão na tagarelice da fauna columbina aportada em minha casa.

       Este talento de Brandao não era novidade. Ele já o exibira em várias ocasiões. Mas, no contexto da gravação, era difícil imaginar que se tratasse de imitação, a não ser pelo absurdo da história. Ao final, conseguimos reunir os animais e devolvê-los ao cativeiro.

       A fita foi enviada, pelo correio, para a casa de meus pais com quem morava minha avó. Dias depois, falando ao telefone, soubemos que meus pais acharam o espetáculo muito divertido, embora não entendessem muito bem como tinha sido produzido. Não conheciam Brandão.

       Minha avó não. Ela apenas ficou feliz por saber que levávamos uma vida natural, produzindo nosso próprio alimento. Todas as tentativas posteriores de convencê-la de que tudo não passava de uma brincadeira foram frustradas. O que ela imaginara ao ouvir a fita era a verdade definitiva. Não havia como alterar isso. Jamais admitiu que a fita poderia ser uma farsa. Morreu convicta!

       Anos depois reencarnou na Velhinha de Taubaté.