O vírus que apavora

     1. Oi, amigos, nunca vi tanta gente rezando, no meu bairro, como agora. Pessoas que eu tinha na conta de ímpias, agnósticas, flagrei-as dando uma passadinha na igreja de Nossa Senhora da Luz, a Padroeira da Pituba, onde moro há quase cinquent'anos. 
     2. Companheiros que, nos últimos tempos, deram para xingar os santos, estão, agora, a invocá-los com a devoção, a confiança e a frequência de um beato convícto. Fazem-no a qualquer hora do dia e da noite. Impressionante, parceiros. 
     3. Pedem a São Beltrano e a Santa Fulana que o traiçoeiro "novo coronavírus", que está tirando o sossego do mundo, não chegue até eles e nem aos que lhe são caros; mormente os velhinhos, que não merecem ser tratados de forma tão cruel. 
     4. Mas o pânico já se instalou, do Oiapoque ao Chuí. Chico de Jesus, meu velho amigo, sofrendo de tanatofobia, foi à igreja da Colina Sagrada e comprou um bonito crucifixo,pendurando-o imediatamente no pescoço. Está certo de que o vírus maldito baterá em retirada ao vê-lo protegido por Senhor do Bonfim.
     5. Outro dileto amigo, o Boaventura, com fortes ligações com o Candomblé, para se ver livre do mortal vírus, pôs no pescoço alguns colares de contas coloridas, e se diz definitivamente defendido pelo seu Orixá, que, por sinal, é o meu também: Xangô. 
     6. Bartolomeu, um evangélico com quem fiz ótima amizade, resolveu se proteger com uma Bíblia, usando-a como escudo. Dorme e acorda com o Livro Sagrado ao lado. Pega o ônibus e o metrô com a Bíblia presa às axilas, enquanto sua mulher fica em casa lendo o "Cântico do cânticos", quando ele sai para a labuta.
     7. E os salvadorenses ou soteropolitanos? Só têm um caminho: recorrer, novamente, ao padroeiro de Salvador, que não é Senhor do Bonfim, mas São Francisco Xavier (1506-1552). Este santo jesuíta é o padroeiro da capital baiana por força do Decreto papal de 10 de maio de 1686.
     8. Francisco Xavier, amigão de Santo Inácio de Loyola, foi chamado para livrar a Soterópolis  "acometida por uma terrível epidemia de febre amarela", no Século 17. E livrou.
     Tempos depois, em 1855, Xavier é novamente convocado para salvar os baianos de Salvador de uma epidemia de cólera, a Bicha. E salvou.
     9. E eu? Que estou fazendo para enfrentar o vírus que apavora? Incluído entre os que estão na chamada "área de risco", tenho me precavido como posso. 
     Enclausurei-me. Não o fiz espontaneamente, mas na raça. Vivo hoje como um passarim engaiolado; sem, contudo, o gorjeio de qualquer deles. Nem imitar um bem-te-vi e sei.
     10. Tive, também, de apelar para os céus. Além das orações de Ivone, com muito prestígio lá por cima, mantenho, re-entronizado, na porta de entrada de meu apartamento, um crucifixo bizantino; igual àquele que Francisco de Assis deixou na capelinha de São Damião, na sua Úmbria. 
     11. Quero ver, se com a ajuda do Pobrezinho de Assis, meu protetor de sempre, livro-me das horríveis máscaras brancas, que mais parecem focinheiras caninas. Mas se for para usá-las, delas não hei de fugir. Estarei, então, na história do "novo coronavírus"... 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 19/03/2020
Reeditado em 28/03/2020
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