Poeta de duas trovas

     1. Sou amigo de uma mulher, bonita e culta, que há anos coleciona quadrinhas. Dias desses, visitando-a, de repente ela abriu um baú e me mostrou vários cadernos com centenas de interessantes trovas, que copiara com sua letra de calígrafa.
     2. Algumas traziam o nome de seus autores; a maioria, porém, permanecia no anonimato. Cada uma mais inteligente que a outra.
     Olha que não é fácil dizer tudo que a gente sente em apenas quatro versos. É preciso ser poeta; poeta  de verdade; inspirado. Não um simples fazedor de "sonetos". Desses, há inúmeros vagando por aí.
     3. Muitas quadrinhas eu já conhecia; outras, eu as lia, naquele momento, pela primeira vez. 
     Um dos cadernos, a amiga abriu com uma trova que conheço e gosto muito. Fê-la o filósofo sergipano Tobias Barreto, nascido em 7 de junho de 1839, morrendo no Recife no dia 26 de junho de 1889. 
               "Esta paixão que me devora o peito,
               Esta sede que abrasa-me as entranhas,
               para acalmá-la, ao menos por instantes,
               Bastava um gole d'água em que te banhas".
     4. A outro caderninho, Florinda entregou sua primeira página a um trovador desconhecido. 
               "À noite quando me deito
               eu rezo à Virgem Maria,
               para sonhar toda a noite
               com quem penso todo o dia". 
     5. E fui adiante; percorrendo, devagarinho, os cadernos da dileta amiga, a colecionadora, como disse, de belas e significativas trovas. E ela: você conhece essa? Anônima. 
               "Todo o resto do seu corpo
               Que beleza deve ser!
               Eu, mais ou menos advinho
               porém não posso dizer". 
     6. E vibrando, perguntou-me: e mais essa? Também de autor desconhecido. 
               "Eu coloquei o meu nome,
               No teu relógio, querida, 
               Faça agora o que quiser,
               Das horas da minha vida".
     7. Quis, então, colaborar com a coletânia da amiga, aumentando-lhe o número de quadrinhas.  E disse-lhe: acrescente mais esta que não tem dono.
               Esta noite eu tive um sonho,
               Mas que sonho atrevido, 
               Sonhei que era o babado
               Da barra do teu vestido". 
     Ela tomou os versos como um galanteio...e me agradeceu com um xêro inesperado...
     8. No final, Florinda perguntou-me: "E você, amigo, já fez alguma quadrinha? Nunca ninguém te levou a fazê-la? Nem na tua juventude, quando o "fogo das paixões" faz o mancebo pensar que é poeta e cantar seus amores , suas amadas em longos versos?"
     9. Recitei para ela, quase sussurando estas duas quadrinhas:
               "Ouvi tua voz pelo telefone. 
               E os suspiros do teu coração.
               Amor, te peço, de mim não zombes,
               Oh! não me mate, tem compaixão!"
                         Ver-te, é sofrer, constantemente!
                         Esperar-te, é a decepção.
                         Risos de ti tenho a todo instante,
                         Amor? Não... Qui desilusão!
     10. Aproximei-me dela; e tocando, de leve, suas mãos, segredei-lhe: Florinda, estas quadrinhas são minhas, o poeta de duas trovas.  Foram escritas, há muito mais de meio século.
     Não diga a ninguém que as conheceu . Deixemos que elas continuem escondidas no fundo do meu baú de boas RECORDAÇÕES.


            
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 27/03/2020
Reeditado em 03/04/2020
Código do texto: T6898616
Classificação de conteúdo: seguro