Sonetaço

     1. Relevem este bizarro título. Apenas usei um vocábulo popular para falar de um soneto que acabo de recolher nas minhas últimas leituras.
     Às vezes, a gente tem que sacar palavras consagradas pelo povo, não encontradas em nenhum dicionário, para se dizer o que se quer dizer. Né mesmo?
     2. Afirmei, em recente crônica, que durante a quarentena, que cumpro com o rigor de um monge cartuxo, voltara aos livros do saudoso escritor maranhense Josué Montello (1917-2006). São livros didáticos, escorreitos, esplêndidos.
     3. Estou relendo, digo, saboreando os seus "Diários": - "Diário da Manhã", "Diário da Tarde", "Diário do Entardecer" e "Diário da Noite Iluminada".      4. Neles, Montello fala, com naturalidade, elegância e lisura, sobre seus amigos; e conta o que lhe aconteceu nas repartições, que dirigiu, na Academia Brasileira de Letras, que presidiu; enfim, os acontecimentos marcantes, no seu dia a dia, durante décadas.
     5. E o "Sonetaço"? Deixem eu confessar uma coisa: depois que dei esse título à minha crônica, perdi alguns minutos de sono.
     Não sabia como os críticos de plantão receberiam esse "neologismo", inventado com o fito de enaltecer um belo soneto que encontrara num dos livros de Montello e por ele elogiado. 
     6. Só conciliei o sono depois de recordar o que observara, em tempo oportuno, o mestre Josué a respeito dos leitores do que escrevemos e publicamos.
     Transcrevo sua constatação: "Diz-me  a experiência que há dois tipos de leitores: os que nos leem para encontrar nossas qualidades; os que nos leem em busca de nossos defeitos". 
     7. Dito isso, eis o "Sonetaço", cujo nome, é                           "Única" 
          No turbilhão da vida cotidiana,
          há sempre o rosto oculto de uma mulher.
          Há no tumulto da existência humana
          alguém que a gente quis e ainda quer.
               Mas, numa febre de paixão insana,
               cego e humilhado, aceita outra qualquer.
               Só, sem íntimo ardor; de alma profana,
               porque a alma nunca acordará sequer.
          E vão passando assim, uma por uma,
          mulheres e mulheres, como vieram,
          sem despertar depois saudade alguma.
               Pobre de quem, como eu, vê que, infeliz,
               teve todas aquelas que o quiseram,
          mas nunca teve aquela que ele quis.
     8. Fez esses versos, merecedores de atenção especial de Josué Montello, um modesto poeta chamado Nilo Bruzzi, admirado pelo autor de "Tambores de São Luís", que disse ser o vate de "Única" - "um poeta que sabia rimar e compor um soneto", o que não é coisa fácil, digo eu.
     9. Montello conta que foi surpreendido com a morte de Nilo Bruzzi. E ao comentar o desaparecimento do companheiro versejador, fez este comentário: "...se retira da vida sem ruído, como se saísse deste mundo de leve, para não incomodar". 
     É o estilo airoso de Josué Montello, até para prantear a partida definitiva de um poeta amigo...
               
            
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 23/04/2020
Reeditado em 23/04/2020
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