EM NOME DA LÍNGUA

A partir do ano que vem não se comerá mais lingüiça neste país. A fauna também sofrerá na pele os efeitos da mudança: Não haverá mais eqüinos, pingüins e sagüis. Não sei se dará para agüentar as seqüelas de tudo isto, se da mesma forma a seqüela será extinta, e o próprio verbo agüentar, em todas as suas conjugações. Conforta um pouco saber que, em compensação, não teremos mais seqüestros. No mais, quase em sua totalidade, as coisas ruins continuarão intocadas: O gueto, a guerra, o aguilhão, a guilhotina, a quebradeira, o quisto e o quinto dos infernos, além de uma infinidade de outras coisas que me vêm á mente como cascata.

Mas estou bem. Tranqüilo, embora só por enquanto, já que a tranqüilidade está com os dias contados. Irá na leva do que acabará. A fauna manterá o esquilo e a enguia, os peixes em geral continuarão tendo guelra para respirar, e restarão coisas boas como o queijo, o quentão e o quintal. Até mesmo aquelas coisas distantes de alguém como eu, a exemplo da guitarra, e outras do dia-a-dia: Minha bicicleta continuará tendo guidão, os proprietários de carros poderão contar ainda com o guincho, e restarão até direitos, como o da queixa e o de querer alguma coisa. Poderemos até continuar sendo alguém, olhando aquém, vivendo a plenitude do aqui.

A vida não será extinta com a extinção do trema, nem com as outras mudanças advindas da reforma ortográfica. Tremeremos um pouco na hora de escrever, mas em pouco tempo, quem sabe (e o próprio quem continuará intacto), tiraremos de letra. Tirar de letra é gíria, creio que exclusivamente carioca. É de letra mesmo, não da letra. O importante é que se faça, seja lá o que for, em nome de uma aproximação mais expressiva entre os países de língua portuguesa, e não apenas para complicar nossa já complicada língua. Por falar nisto, o que será da lingüística sem o trema?

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 15/10/2007
Código do texto: T695482
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