O processo das formigas


     1. Outro belo livro que desapareceu das nossas livrarias: "Terra de Santa Cruz", do consagrado escritor Manuel Viriato Correia Baima Lago Filho, ou, apenas, Viriato Correia. É possível encontrá-lo nos nossos queridos sebos, onde a gente adquire livros rejeitados por seus ex-donos.
     2. Viriato Correia, para quem não sabe, nasceu em Pirapemas, cidade maranhense, no dia 23 de janeiro de 1884 e morreu em 10 de abril de 1967 no Rio de Janeiro. Vejam o que ele foi enquanto esteve por aqui: foi jornalista, escritor, dramaturgo, teatrólogo e político. Eleito em 14 de julho de 1938, ocupou a Cadeira n. 32 da Academia Brasileira de Letras.
     3. Nesse seu excelente livro, Viriato conta interessantes episódios da História do Brasil e momentos cômicos de vultos que fizeram essa História. Como, por exemplo, o processo aberto contra as formigas que moravam em um convento franciscano, o Convento de Santo Antônio,  em São Luís do Maranhão. 
     4. O processo das formigas é estranho e jocoso ao mesmo tempo.  Num rigoroso resumo, mas procurando ser fiel ao texto original, vou lhe contar esta história, meu dileto leitor. 
     Começo, dizendo, claro, por que as formiguinhas foram processadas e por quem. Isso aconteceu no "primeiro decênio do século XVIII". 
     5. De repente os frades descobriram que a horta do convento estava sendo arrasada pelas formigas que se deliciavam com o repolho, a alface e a cebolinha, deixando enfraquecida a sopinha da comunidade. Os capuchinhos entraram em pânico. A clausura, até então silenciosa e tranquila,  assustou-se. 
     6. E o pânico aumentou entre os fradecos quando eles viram que "as malditas saúvas, as infernais formigas proliferavam assustadoramente, devastadoramente por todos os cantos do terreno dos frades". A comunidade fazia o que estava ao seu alcance para sustar a ação avassaladora das formiguinhas, que, como se sabe, "trabalham" de maneira muito organizada.
     7. E o pânico foi ainda maior quando os capuchinhos constataram, que depois de arrasar a horta, as formigas invadiam o pomar e a dispensa do convento. Atacavam as laranjeiras, os tamarindeiros e as jaqueiras. E furtavam "a farinha com que os frades  faziam os seus ricos pirões". O superior da Ordem foi chamado a intervir. Nada resolveu. 
     8. Reunidos, os frades decidiram processar as formigas, acusando-as de invasoras e ladras. Achavam que, "a autoridade do juiz desse um remédio àquele abuso". O processo correu no foro eclesiástico de São Luís. As formigas, res, tiveram quem as defendesse, por determinação do juiz. Os frades, autores, tiveram defensor, mas Viriato não lhe dá o nome.
     9. Na inicial, os frades alegavam que "as formigas não só os roubavam, tirando-lhes o pão da boca com a destruição da horta e do pomar e subtração da farinha de pão guardada para o cotidiano abasto da Comunidade" e ainda queriam expulsá-los de casa. E, contrariando o espírito seráfico, pediram "que fossem mortas as formigas". 
     10. Por sua vez, o curador das rés, em defesa de suas clientes, alegou que as formigas não podiam ser processadas, pois, "não há nelas o uso da razão visto que são irracionais e, pelo que se sabe, os irracionais não conhecem a diferença do bem e do mal". 
     11. E mais. Que as formigas "eram naturais da terra: sempre ali viveram..."; e que "quando os religiosos ali chegaram, já ali estavam as formigas"; e que "a terra era de Deus e não deles, os frades".      Quis a defesa dizer, em última análise,  que invasores eram os monges. 
     12. Da sentença do juiz, deduz-se que ele foi salomônico no seu veredicto. Vejam: ..." determinou que os frades sinalassem dentro da cerca do quintal  do convento um lugar para as formigas viverem  e estas sob pena de excomunhão, não mudassem de vivenda, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo". Sentença inteligente. 
     13. Este processo, segundo Viriato, desapareceu.      Mas ele garante que a demanda existiu e que  a sentença final foi prolatada. Termina, afirmando: "Em 1860, mais ou menos, frei Vicente de Jesus deu-os de mimo a um particular".
     Ô, naquele tempo já existia isso? Que pena!  
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 29/07/2020
Reeditado em 30/07/2020
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