O jesuíta e as cobras

     1. Tenho medo de cobras, desde que nasci. Para mim, todas elas são venenosas. Tremo diante de uma jararaca e o mesmo diante de uma cascavel. Até a inocente corre-campo me assusta.      
     Houve um tempo em que elas me perseguiam nos meus sonhos. Sonhar com uma cobra no seu encalço é terrível. Acordava suando; sobressaltado; em pânico.
     2.  Uma vez, me contaram esta história que só fez aumentar meu pavor.
     Uma jararaca e uma cascavel se encontraram. E quase ao mesmo tempo,  quiseram saber qual a mais perigosa.
     A jararaca: "Sou eu. Mordo o cidadão e vou embora, certa de que ele não escapa rá". A cascavel: "Sou eu. Pico um cidadão e imediatamente me afasto para que ele, morto, não caia em cima de mim".
     3. Certa ocasião, estive no Instituto Butantan, em São Paulo, onde, como sabem, pesquisas são feitas na busca do melhor remédio, capaz de enfrentar o ofidismo.
     Visitei o mostruário que exibe as serpentes mais peçonhentas do Brasil na companhia de um competente funcionário do Instituto. Ouvi tudo com muita atenção, mas saí de lá com mais medo ainda. 
     4. Quando comecei a frequentar minhas igrejas, admirava a coragem da Virgem Maria esmagando, com seu pé, a cabeça de uma serpente.
     Curioso, perguntei ao padre vigário, meu amigo, se a cobra de Maria Santíssima era uma cascavel ou uma jararaca. O provecto sacerdote, de cabelos brancos, muitos anos no sertão, não respondeu. Limitou-se a sorrir.
     5. E no discutível episódio do Paraíso envolvendo Adão e Eva? A outro padre, este conhecedor profundo dos segredos e mistérios da Teologia, perguntei se a serpente que enganou Adão era uma cascavel ou uma jararaca.      Ele mudou o rumo da prosa e fez essa dúbia observação: "Quem sabe se não foi uma naja?". Aí, quem deu risadas fui eu. 
     6. Mas, afinal, o que me levou a escrever uma crônica sobre cobras e ainda convidar um jesuíta para me ajudar nessa bizarra tarefa? 
     Coisas dos tempos do coronavírus ou Covid-19, nem sei mais como chamar.
     Com essa história do "Fique em casa", tenho tido tempo de sobra para mexer nas minhas estantes e re-descobrir livros que há muito repousam em alguma prateleira distante. 
     7. Muito bem. Ontem, por volta da meia-noite, já alcançado por um estranho cansaço, de repente caiu-me nas mãos um precioso livro, adquirido há muitos anos, na extinta e saudosa Livraria Civilização Brasileira. 
     O livro "Cartas inéditas", do padre José de Anchieta aos seus superiores no "velho mundo" faz a "descripção das innumeras coisas naturaes, que se encontram na província de S, Vicente hoje S. Paulo". 
     8. Este livro todo paulistano devia ler. Imagine que o nosso Santo Anchieta, nessa carta, já se refere às fantásticas inundações provocadas pelas torrenciais chuvas que desabam, todos os anos, sobre a Paulicéia do poeta Mário de Andrade (1893-1945). 
     9. Depois de falar sobre o crocodilo, a capivara, o caranguejo, as aranhas, o escorpião, o tamanduá, o porco-espinho, os macacos, o tatu, as formigas, as abelhas, as moscas e mosquitos, o papagaio e até das ervas medicinais, Anchieta discorre longamente sobre as cobras, começando pela jararaca.
     Em texto conciso e muito claro ele descreve essa serpente mostrando sua periculosidade. É de arripiar.
     10. Em outras páginas, o jesuíta foca a cobra bóicininga. Uma serpente que "tem na cauda um guizo. Que faz resóar, quando ataca alguém". Creio que se trata da cascavel.
     Num determinado momento, José de Anchieta dá uma informação que por pouco não me fez vomitar: que os índios tiravam a cabeça dessas serpentes, torravam e comiam. Vige Maria! Como se diz no meu Ceará...
     11. Meu santo José Anchieta - nascido nas Ilhas Canárias em 1534 e morto em 1595, no Brasil - canonizado (por que demorou tanto?) em 2014 pelo Papa Francisco - nem sua proximidade com as cobras (chegou a ser picado por uma jararaca) me fizeram amigo das serpentes. 
     Que o veneno das cobras - indispensável à fabricação de remédios - nunca nos falte. Seu veneno, pois, será sempre bem-vindo... aos laboratórios.       
         
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 03/09/2020
Reeditado em 03/09/2020
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