O mundo recompensa os que sonham

Se quiser falar comigo ligue dois. Para falar com a Central de Relacionamento ligue dez! A moça da televisão por assinatura está ao telefone fornecendo esclarecimentos e poucas imagens. Obedece ao pacote que luta pelo fim da monotonia dos dias se arrastando e todos na casa querem dar conselhos. Trata-se de alguém especial, afinal telefonista da televisão possui encantos. Voz bonita, mesmo zangada. Não nos deixe sem os Sompsons! Não perturbe! Queremos assistir! Alguém gritou histérico na escada: ”ligue já!” Entre o ruído de novela da vizinha provocando inveja. Calmo, metódico, J. Carlos fez parar a turba da sala com simples gesto de silêncio. Compreender é tudo! Há um povo trabalhando e suando para o conforto do lar. Foram para a biblioteca e alguns ficaram espiando na saleta o sexagenário pai ao telefone. Prezado cliente para maior segurança estamos gravando tudo. Gravaram: “Hoje, mocinha, uma novidade vai sacudir a monotonia dos seus dias arrastados: a conta está paga! Quer saber? Eu não durmo sem assistir as piores notícias do mundo. Está vendo? Isto vai afetar o relógio biológico da família inteira. Estamos girando em torno do aparelho como gaivota sem ilha. Assim jamais ficaremos sabendo se os pólos chegaram no palito de vez como picolés! Não adianta congelar os canais prediletos, os pólos continuarão derretendo como o gelo no uísque de sábado e nós continuaremos sem sinal”. Tudo para maior segurança. Degustação?

A moça se esforçava para admitir que tudo não passava de um mal entendido, engano técnico, afinal o pacote original estava totalmente descaracterizado. Entrava e saía do ar novos canais sem que quisessem. J. Carlos reagiu de modo inesperado. Manteve os filhos afastados, a mulher e a sogra na biblioteca. Tomado pelo rio escuro e abissal do luto repentino chorou lavando o canto seco da imaginação. Sinto muito, estou chorando pela falta da novela. Estamos no zero oitocentos, conte-me um pedacinho.

Ninguém viu, mas J. Carlos fez beicinho.

A mulher reclamava da ausência das novelas na TV por assinatura, mas logo providenciaram. Tudo não passava de ironia com J. Carlos teimando. As novelas ainda não haviam desembarcado nesse mundo de interdições da comunicação mais cara.

Zanza era mulher com intuição da oferta e da procura. Quando moça, ainda nem conhecera J. Carlos, sonhava ser telefonista de telemarketing em pleno plantão. Para ela toda jovem guardava em si um potencial para atendente. Via nisso algo de arte rara e comovedora: Bip! Alô! Alô! Aqui é Mara Viu Filha estou passando ligação para... Você é especial. Leitores! Atentem para a vida das moças de telefone. A candura compensa tornando-as célebres da paciência em alta. J. Carlos estava virado num telemaníaco repuxado e feio. Contido, educadão, mas distraído. Sabia que os tempos estavam mudando e que não adiantava bater nas laterais do aparelho para entrar no ar como fazia durante a guerra. Levaria o caso da assinatura para o Almeirão, psicanalista da mulher. Foi um susto! Precisou adquirir outro pacote para assistir os canais de sempre. Queria novelas. Novelas. (Psicanalista) “... Na memória regressiva existe a função totêmica”. Tentou pelo menos melhorar a lamentável dinâmica verbal da mulher sem os canais prediletos. Buscava em si a melhor compreensão da própria natureza tecnizada. Dias depois Zazá passou distante do aparelho. Conectou as nádegas na cadeira do computador permanecendo ali em navegação solta e fresca. Sentiu a dimensão do fato, precisava contar aquilo ao J. Carlos. Pela primeira vez em dez anos havia recusado o sofá, tampouco roído unhas durante o novo capítulo de algum drama refinado. Em seu novo plano sonhava somente com novelas na frente da televisão por assinatura. Sem saber a razão e diante do micro sem televisão desabou em pranto. Sempre o mesmo J. Carlos lhe disse: Você está chorando Zazá. Não ligue. O mundo recompensa os que sonham...