A autonomia médica como objeto de discussão
Tenho acompanhado os debates da CPI da COVID-19 do Senado Federal, e, até o momento, o que mais me chamou a atenção foi a questão da cloroquina, não pela importância do medicamento em si, que se mostrou ineficaz para o tratamento da infecção pela COVID, embora tenha sido recomendada e prescrita por muitos médicos afobados em dar aos pacientes uma poção mágica que curasse a doença, mas porque foi reivindicada a autonomia do médico como justificativa primordial para a prescrição do medicamento ineficaz.
Como médico que milita na medicina desde mil novecentos e setenta e oito, e, principalmente por nunca ter feito pesquisa biomédica ou farmacológica de qualquer natureza, desde o anúncio panegírico da cloroquina como fármaco capaz de diminuir os agravos da infecção pela COVID-19, descri da eficácia do medicamento a partir da premissa de que não tinha havido a comprovação científica de tal eficácia.
Como de fato não há, mesmo porque os três ministros médicos (Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Marcelo Queiroga) disseram na CPI que não prescreveriam a cloroquina para o tratamento da COVID-19, fato corroborado pelo presidente da ANVISA (Barra Torres) que se negou a alterar a bula do medicamento cloroquina sugerida pela doutora Nise Yamaguchi, porque só quem pode solicitar alteração de bula de qualquer fármaco é o fabricante, mediante apresentação de pesquisa séria randomizada e após meta-análise, isto é, submetida aos pares.
Mandetta admitiu ter autorizado o uso compassivo da cloroquina em pacientes graves, mas não recomendou o uso da medicação além dessa situação de uso, logo descartada, quando se mostrou inútil.
Nelson Teich declarou ter pedido demissão quando se negou a incentivar o uso de cloroquina, e, além disso, declarou que os médicos que não usaram tal cloroquina respeitaram a ciência, enquanto os que insistiram na prescrição da malfadada cloroquina estavam agindo de acordo com o seu nível de competência. Entendida, ao menos por quem vos fala, como baixo nível de competência.
Marcelo Queiroga, quando perguntado sobre o porquê da não utilização da medicina baseada em evidências desde o início da pandemia, deu uma grande contribuição à compreensão da querela; primeiro falando que a autonomia do médico é uma instituição milenar, enquanto que a medicina baseada em evidências surgiu nos anos setenta do século passado.
Queiroga também disse que a prática médica pode ser qualitativamente avaliada a partir de três níveis da conduta médica:
Nível A: alto nível de prática médica, quando a prática se submete a parâmetros científicos elevados; Nível B; quando a prática médica é exercida com adesão razoável ou boa aos parâmetros científicos; Nível C: quando a prática médica é exercida com adesão baixa aos parâmetros científicos baixos.
Fica bastante claro que nos níveis de atuação médica B e C os erros e desacertos são mais prováveis de acontecer, e, junto com esses erros, a imperícia ou a negligência, inclusive como charlatanice.
Como médico nunca prescrevi remédios que não estivessem bem orientados nos compêndios ou nas bulas, muito menos quando o incentivo ao uso viesse de políticos ou oportunistas, porque isso macularia a minha competência.
Creio que a autonomia médica como está no Código de Ética Médica precisa ser revisada, não é qualquer doutorzinho que pode sair por aí dizendo que tem certeza que tal ou qual medicamento é eficaz porque ele tem certeza que é eficaz. E o pior é que tais doutorzinhos continuarão a arrotar certezas se continuarem protegendo suas incompetências na autonomia milenar do médico, que desde o surgimento da medicina baseada em evidências se mostra caduca.
Ainda não aconteceu a presença do Conselho Federal de Medicina na CPI da COVID-19, escreverei sobre essa presença logo depois que acontecer. A desgraça da pandemia faz a autonomia do médico objeto de discussão profunda, que terá que acontecer.
Por ora, é só.