O velório de Tutankamon e os ossos do tio Everaldo

Aluu! Inuugujaq meus caros 23 fieis leitores e demais 36 que de quando em vez aparecem aqui pelo meu cemitério literário a fim ler crônicas fúnebres. Ajunngilla? 

Cronistas são literatos brutais, já escrevi aqui. Brutais como a vida é. Poetas bebem vinho tinto de boa safra, demi-seco; cronistas tomam cachaça pura no martelinho do buteco. Romancistas, tão inteligentes, transformam adubo em um bosque; cronistas são, como diz o Dartanhão, catadores de titica, geralmente transformando-a em coisa pior do que, por natureza, já é.

Assim, já que estamos falando em titica, informo-lhes que meu pai, o Velho Bacamarte, mandou o mundo à merda, como ele mesmo dizia. Meu pai morreu, uma bosta isso. Desde 2018 se arrastava seu calvário. O velho era forte, resistiu bravamente, até o limite. Não entrarei em detalhes, quem me acompanha aqui no Recanto, por esses anos, deve talvez lembrar de algumas crônicas onde escrevia sobre isso, indiretamente. Se não lembrar, tanto faz, isso não faz diferença alguma agora, mesmo.

O pai já vinha pelas tabelas e, um dia, a bola 7 fatalmente vai pra caçapa. Era o esperado. 88 ele tinha, pessoa conceituada em Charky City. Depois do velório, estamos eu e a mãe tomando whisky e chorando as dores, sentados nas confortáveis poltronas da biblioteca da casa deles. A sra Bacamarte e eu somos muito íntimos, confidentes, sou o preferido dela. Ela é linda, tem olhos verdes. Sempre fui apaixonado pela minha mãe. Mas, como já disse o médium brasileiro Chico Xavier, a intimidade em demasia é nefasta. Assim, estimulada pelo Chivas Royal Salute, minha mãe resolveu fazer ao seu preferido uma revelação surpreendente, certamente buscando amparo para sua consciência pesada. Falou que, uma vez, traiu meu pai.

Imaginem, tudo o que tu não quer saber depois de ter enterrado o pai é que ele foi chifrado pela mãe, mas a sra Bacamarte achou que era uma boa me confidenciar isso. "Ele sabia?". "Não". "Alguém mais da família sabe?" "Não". Foi um momento de fraqueza que, agora, vendo o corpo frio e esticado do marido de tantos anos no esquife, pesou. "Mãe, deixa assim. Isso tem alguma importância agora?" "Não tem?" "Não. Tu és uma pessoa legal, todo mundo tem suas falhas, a coisa agora é daqui pra frente, esquece isso." Pois é, vai que ela quisesse esticar o assunto, né? Vai que o pai, que era um cara muito fechado e não se abria intimamente com a gente, tenha metido chifre nela também, né? Problema deles, coisa deles. Realmente não estava interessado. Fiquei muito chateado. Até que um pensamento sombrio passou pela minha mente...

Como não sou parecido com meu pai, perguntei: "Mãe, eu sou filho do pai, né?" Ela me olhou, surpresa, quase deixando cair o copo e desperdiçando uma boa dose de Chivas. "Foi só uma coisa breve, Tunico, que não se repetiu. Só engravidei do teu pai". Ela ficou me olhando, os olhos verdes marejados (adoro esse lugar-comum). Tomamos outra dose. Acho que, nesse momento, ela se arrependeu de ter me contado. Amo a sra Bacamarte, com certeza é o amor maior de minha vida. Não faz mal, vai morrer comigo isso, mesmo. Comigo e com tuzes, agora. Cronistas são brutais e desalmados. até quando amam e sofrem. Aliás, principalmente nessas situações. Então, pra tuzes terem bastante motivo pra dizerem que esse Bacamarte é um monstro que não respeita nem a morte do pai em suas crônicas, vou contar uns fatos do velório. Velório sempre é tragicômico. Vamos ao cômico.

Chegou o corpo do Velho Bacamarte, magro, e eu, olhando-o no caixão, com o rosto todo esticado e a boca colada, lembrei do faraó aquele, Tutankamon. Não parecia o corpo do Velho Bacamarte, parecia uma múmia. Coloquei a mão na testa. Gelado, um picolezão de Bacamarte. O pai gostava muito de picolé, inclusive. Aquele monte de gente chorando na volta, me aborrecendo. Vinham me dar condolências e eu agradecia, educado. O pai detestaria se eu fosse deselegante no velório dele. No primeiro velório em que fui o Velho Bacamarte foi quem me levou. Morrera o seu Jacaré, um senhor que possuía uma cachopa de cabelos crespos bem brancos e usava óculos, recordo bem. Na hora em que chegamos, já pela meia-noite, estavam uns homens sentados perto do seu Jacaré, contando causos dele e rindo baixo. "Pai, as pessoas riem em velório? Pensei que só chorassem". "Em velório acontece de tudo, Tunico". Verdade.

"Meus pêsames, Tunico. Descansou o seu Bacamarte, né? Estava sofrendo..."
Ouvi muitas vezes isso no velório. "Descansou..." Nunca ouvi do meu pai, durante sua doença, que ele queria descansar. Ele nunca disse isso. Queria viver, o Velho Bacamarte, e não se queixava do sofrimento, só gemia pela dor. Inclusive na última vez em que estive com ele, no hospital, ainda falamos dumas ajeitadas que dei no seu quarto, visando melhorar o espaço para o trabalho das cuidadoras, e ele disse que estava louco pra voltar pra casa. Estava sofrendo e doente o Velho Bacamarte, mas não estava cansado de lutar pela vida, apesar de tudo. Quem "descansou"? A família, de toda a trabalheira, de todo o gasto. O pai não descansou, ele morreu. Ponto. Pelo Velho Bacamarte, ele continuaria gerando emprego e renda em Charky City, via suas cuidadoras. Essas estavam duplamente tristes no velório: pela perda do Velho Bacamarte e do emprego. Sei lá, né? O que a gente sabe realmente acerca do que se passa na cabeça e no coração das pessoas?

Lá pelo meio do velório do pai, vem até mim o tio Giane, último irmão ainda vivo. "Tunico, tu foi lá ver se já abriram o jazigo, se já tá tudo certo?". "Vim de manhã aqui, tio, e falei com pessoal, mostrei o jazigo, acho que tá tudo ok". "Ah, Tunico, vai lá e confere pra ver se fizeram tudo certinho. A Ana vai contigo". Lá fomos eu e a minha prima, filha do tio Giane, satisfazer a preocupação dele. Pobrezito, é o último que restou da família. Chegamos lá, tudo aberto, ok. "E aqueles sacos pretos ali, Tunico?" "Ana, devem ser o tio Ivair e o tio Everaldo, né". "Ah, sim, os ossos deles". Ela ficou quieta por um momento, depois disse: "Tunico, quem sabe a gente pede pra eles guardarem os sacos mais escondidos?" "Por que?" "É que a Sabrina e a tia Sarah estão aí, elas são muito sensíveis, vão ver esses sacos pretos com os ossos do tio Everaldo e vão se fragilizar". Puxa, o meu amado Tutankamon Bacamarte lá, frio e todo esticado, e a Ana preocupada com os ossos do tio Everaldo. "Bah Ana, assim ó, eu vou ali contigo falar com os caras da funerária, mas tu toma a frente que eu não tô com cabeça pra esse tipo de pormenor, tá?" "Sim, claro, Tunico".

O rapaz da funerária é uma pessoa muito educada e prestativa. Ouviu minha prima falar e disse: "Olha, isso é com o pessoal do cemitério, não com a gente, mas já te adianto que, se eles deixaram ali, é para quando o caixão chegar eles não perderem tempo, tudo já tem de estar na volta". E arrematou: "Além disso, se eles colocarem os ossos no chão, em algum canto, os cachorros rasgam os sacos e pegam os ossos". Juro que, na hora, me veio à mente a imagem do meu cão, o Blackfire, com o fêmur do tio Everaldo na boca, faceiro a abanando o rabinho, e a tia Sarah e a Sabrina chorando: "Larga o fêmur do meu marido, larga o fêmur do meu pai". Não sei por que imaginei a cena, mas, como deu vontade de rir, sai dali e deixei a Ana sozinha. Imaginem? O pai lá, feito o Tutankamon, e eu imaginando meu cachorro roendo o tio Everaldo. A que ponto eu havia caído? Ou estava, inconscientemente, me anestesiando daquela maneira? Sim, pois perder pai é duro, gente, tuzes, suponho, a maioria de tuzes, devem saber como é. Um pouco, também, devido a longa enfermidade que o vitimou e a perspectiva concreta de que ele morreria, o luto estava, digamos, pré elaborado. Chorei muito nos meses anteriores, quando a vaca já começara a mugir avisando que iria para o brejo.

Buenas, depois disso tudo e da revelação da minha mãe, fui pra casa. Triste, né, claro. Estava tomando outra dose de whisky, um Blue Label, agora. A Louise já estava dormindo. Bom ela e o Toninho terem estado comigo o tempo todo. Ela chorou um pouco demais pro meu gosto no velório, mas ok, né, é ítalo-brasileira, povo bem dramático, e gostava muito do Velho Bacamarte que, por sua vez, achava ela muito gata.

Pensava na transitoriedade e na brutalidade da vida terrena. Cronistas são seres brutais. Urubus, corvos e hienas do cotidiano, caçadores de titica, reprocessando-a em necrochorume a fim de obter, quiçá, alguma utilidade social. Lembrei do Bukowski: "Escrever para não enlouquecer". Daí decidi fazer essa crônica pra tuzes. Na verdade, pra mim, mas compartilhando-a com tuzes.

Te amo, pai. E isso é só o que importa nesse momento. Até um dia desses, depois de muitas dezenas de anos, aí pelo plano espiritual.

Qujanaq por terem dado uma passadinha por aqui hoje. Takuss"!


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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.


MAIS TEXTOS em:
http://charkycity.blogspot.com

(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013: "23/10/2013 00:18 - Giustina
Oi, Antônio! Como hoje não é mais aquele hoje, acredito que não estejas mais chateado... rsrrs! Quanto ao teu blog, sugiro que continues a divulgá-lo, afinal, numa dessas tu lembras tua senha... Grande abraço".)

CARTA ABERTA aos meus caros 23 fieis leitores: 
https://www.recantodasletras.com.br/cartas/3403862

GLOSSÁRIO KALAALLISUT:
Aluu - Olá.
Inuugujaq - Boa tarde.
Ajuungila - Como estão?
Qujanaq - Obrigado.
Takuss' - Até mais.

Antônio Bacamarte
Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 10/09/2021
Reeditado em 03/01/2022
Código do texto: T7339397
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