Conflitos além dos existentes entre a fé e a ciência

Conflitos além dos existentes entre a fé e a ciência

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Semana passada, o Papa Francisco, em ato religioso com diplomatas de muitos países, declarou que é necessário que todos os povos e seus governantes respeitem a ciência, que os gestores parem de questionar a importância das vacinas, e que se faça o correto: que se vacine todo mundo e se respeite as regras de controle sanitário inibidoras da transmissão do vírus COVID-19. Os conflitos entre a fé e o saber, ou a fé e a ciência sempre existiram, e, muitas vezes a fé calcada em charlatanismo ou pensamento mágico se equivoca. Jünger Habermans em seu livro Fé e saber opina que as religiões delimitam até onde a ciência pode ir sem cometer desumanidades. A bioética, a normatização do exercício das pesquisas biomédicas, cuja fiscalização é feita pelos órgãos de controle (ANVISA, no Brasil, FDA, nos States, por exemplo), reprime experimentos desviantes que podem trazer risco aos seres humanos ou traumatiza-los física ou psicologicamente.

Mas não é só na área de saúde que o problema sempre existiu. O Papa João Paulo II, representando a Igreja Apostólica Romana, pediu desculpas a Galileu Galilei pelos constrangimentos impostos ao cientista por ter provado que a Terra era redonda. Isso mostra como a Igreja evoluiu. Fazer mea culpa redime o equivocado, não fazer torna (indivíduo ou instituição) perverso e desviante, até mesmo delinquente.

Hoje em dia, infelizmente, os conflitos entre a ciência e a fé adquiriram outros componentes: a política e o mercado. Mas isso não vem de hoje, recordemos o nazismo e a eugenia (teoria nefasta que afirma que existem raças superiores). O nazismo gerou médicos monstros como Joseph Mengele que fazia experimentos errados em prejuízo das pessoas que ele maltratava, entre outras coisas aplicando doses altíssimas do hormônio do crescimento em crianças, seleção de quem só prestava para morrer por ser imperfeito. Mostrando que não só as religiões podem aviltar o exercício correto da ciência.

Em julho do ano passado, foi descoberta a fraude causada pela empresária Elizabeth Holmes, de trinta e quatro anos, dona da empresa Theranos, que via um startup que não deu certo, promoveu e captou investimentos milionários para a venda de um kit realizador de exames de múltiplas doenças, na verdade uma fraude, que pode a condenar a vinte anos de prisão. Celebridades apareceram ao lado dela, como Bill Clinton, entre outras.

Desse modo, nós médicos devemos pensar e aceitar que existem conflitos justos entre a fé e a ciência, conflitos injustos e ignóbeis entre a fé e a ciência, conflitos entre a ciência e a política, e conflitos entre a ciência e o mercado, este último alimentando charlatanismos como sempre fez, vendendo gato por lebre, como há muito tempo se diz.

No Brasil, em janeiro de dois mil e vinte e dois, o presidente da ANVISA, contra-almirante Antônio Barra Torres, fez um desagravo em nota relativo às declarações do presidente Bolsonaro que acusou a ANVISA de ter interesses escusos relativamente ao ato que liberou a vacinação para as crianças de cinco a onze anos. Em sua nota, o almirante fez a seguinte demanda: não prevarique se há algo relativo à minha pessoa ou a funcionários da ANVISA, esclareça os fatos, se tiver grandeza para isso.

A questão da ANVISA mostra o conflito entre a política e a ciência. Isso causou a derrota da Alemanha na Segunda Grande Guerra, justíssima derrota. Aplicar a fé para apoiar experiências que raramente são bem sucedidas é a pior conduta social que os homens de fé podem ter. Parece claro que no curso da pior pandemia dos últimos cem anos nós médicos não podemos errar. Errar nem sempre é humano. Combatamos juntos os excessos da fé, do mercado e da política. Não podemos permitir que equívocos dessa natureza aviltem a medicina.

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10/01/2022

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 27/02/2022
Reeditado em 27/09/2022
Código do texto: T7461380
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