Quase fui franciscano

 

     1. Muito cedo, meus pais cuidaram de me matricular em um colégio franciscano. De uma hora para a outra, me vi internado no colégio seráfico de Canindé, no interior do Ceará, dirigido por frades alemães.  Não era um seminário. O seminário viria depois. Acredito, que na decisão dos meus pais, católicos praticantes, pesou muito a opinião de um frade, meu tio, irmão do meu pai.  Todos queriam me ver de hábito.

     2. Sou, portanto, um ex-aluno de Canindé, como são conhecidos os que estudaram naquele excelente colégio. Em Canindé estudei de 1947 a 1949. Internato, só ia em casa nos fins de anos. E com a recomendação de não namorar. O celibato devia ser guardado, desde sempre. Nunca obedeci a essa estranha determinação. Nunca deixei de lado as belas sertanejas que me faziam festa, escolhendo uma. Voltava pro colégio cheio de saudades...

     3. Sobre Canindé. É uma cidade-santuário. Fica a 120 quilômetros de Fortaleza. Em Canindé, os franciscanos construíram a maior igreja, hoje basílica, franciscana das Américas e um colégio. Depois de Assis, na Itália, Canindé, no Ceará. A cidade recebe, o ano todo, centenas de romeiros. Chegam para agradecer o milagre ou simplesmente pedir a proteção do santo seráfico. No dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, são milhares de peregrinos vindos do Pará, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Bahia.  O Nordeste todo.

     4. Belos dias, os que passei no Colégio Seráfico de Canindé. Ainda sonhando em ser franciscano, me imaginava vestido num burel marrom pregando pelo mundo. Queria ser missionário. Veio, em seguida, o seminário. E em janeiro de 1950 desembarquei em Ipuarana, o Seminário maior, na Paraíba, mais precisamente no alto da serra da Borborema; entre Campina Grande e Lagoa Seca. Continuei meus estudos, ainda certo de que me ordenaria e passaria a pertencer à Ordem dos Frades Menores, OFM. 

     5. Com dois anos de Ipuarana, assaltaram-me as primeiras dúvidas. No silêncio dos claustros, passei a me perguntar se tinha mesmo vocação. Fiquei perdido. Recusava a confissão auricular e a comungar. Minha dúvida, com o tempo, aumentava; e o meu martírio também. Pensava em falar com o meu confessor, um frade velho cheirando a charuto e incenso. Desistia e não sabia porquê. Conversava com um ou dois colegas mais amigos e logo me davam uma namorada, responsabilizando-a por minha saída do Seminário.

     6. Junho de 1952, o dia não me lembro. Acordei decidido a deixar o claustro.           Depois do café da manhã, procurei o padre reitor, um frade de cara amarrada.           Parecia intransigente, mas não era. Acolhia os alunos com amor de pai.

          Cheguei à sua cela, com voz trêmula e pernas bambas e disse: Frei estou deixando o Seminário. E ele, assustado: "Por quê? Pensou bem?" Confessei-lhe que perdera a vocação. Ele entendeu e marcamos a data da saída. No dia aprazado, ultrapassei, saudoso, o portão principal do Seminário e ganhei o mundo...Saí, mas não rompi minha amizade com Francisco de Assis, a quem sempre, nas horas difíceis, peço uma ajudinha e ele nunca me negou.

     Em tempo. Por que resolvi contar esta história que, a rigor, só a mim interessa.                        Após reler, com o maior carinho, "Informação ao Crucificado", maravilhoso livro do saudoso escritor Carlos Heitor Cony. Ele conta, no seu estílo sincero e irreverente, os dias que antecederam sua saída do Seminário, quando se preparava para a ordenação sacerdotal. 

     Não sei se com a mesma intensidade, mas tivemos os mesmos momentos de angústia nos dias que antecederam nosso adeus ao Seminário. 

    Fui diferente do Cony, que, ao deixar o Seminário, decretou o fim de Deus - "Deus acabou". Não encontrei motivos para imitá-lo. Continuo com Deus, até quando Ele me quiser.

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 23/03/2022
Reeditado em 25/03/2022
Código do texto: T7479076
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