Maria dos Anjos

                                                (Relembranças)

 

          1. Lembro-me muito bem que morávamos no mesmo quarteirão sombreado por frondosos ficus de benjamins. Corria o tempo de um mundo pouco conhecido. Para os que moravam no interior, principalmente. Forçando um pouco, tempos de relativa inocência, meninos. 

          2. Maria dos Anjos e eu morávamos no mesmo quarteirão, como disse acima. Tinha de quinze para dezesseis anos de idade, mas já era uma mulher. Um ano mais nova do que eu. Com um sorriso envolvente e um corpo parecendo ter saído das mãos de Michelângelo, ela encantava os que a conheciam de perto e os que a viam passar, muitas vezes com a velocidade de uma cadente.

          3. Irrequieto, no vigor dos meus 17 anos, fazia tudo, confesso, para ver Maria dos Anjos desnuda. Sabia, porém, que seria impossível: o padre vigário, seu confessor, jamais a deixaria expor nem que fosse somente os seus joelhos. Seu busto, perfeito e suplicante, vivia pernanemtemente coberto e protegido por um medalhão da Virgem Maria, de quem ela era incondicional devota. 

          4. Um dia, com galanteios previamente elaborados, tentei me aproximar de Maria dos Anjos, surpreendendo-a durante uma novena de maio. Ah! Os maios! Mês dos amores e das flores, desde a mais inodora a mais perfumada. Em maio,todas as flores são iguais. Não há nem as menos cheirosas, nem as mais perfumadas. São todas flores de Nossa Senhora. Mês inspirador. Algumas de minhas crônicas, pelos leitores consideradas boas, as escrevi em maio. 

          5. Criei coragem e disse a Maria dos Anjos tudo que sentia por ela, enquanto benditos marianos eram cantados pelas meninas do coro paroquiano.  Disse-lhe, que  minha devoção por ela superava a que tinha pela Virgem. Que faria tudo pra ganhar seu coração, nunca explorado. Maria dos Anjos ouviu os galanteios com a serenidade de uma deusa e esboçou um ligeiro sorriso. Foi enigmática, o que considerei uma boa coisa. 

          6. Marcamos um encontro para a noite da próxima novena, em uma das portas laterais da igreja entregue à avó de Jesus, Senhora Santana, a matriz da cidade. Na hora acertada, pus-me a esperar Maria Dos Anjos. As horas corriam e nada. De repente chegou-me às mãos uma carta com sua assinatura. Dizia-me Maria, que, desde cedo, resolvera ser freira. E que por isso não compareceria ao encontro. E pedia minha compreensão.  

          7. Compromissos obrigaram-me a deixar minha cidade. Sem despedir-me de Maria dos Anjos, tomei o primeiro trem e vim pra capital. Perdi-a de vista. Os anos se passaram sem que eu soubesse notícias dela. Mas vejam o que aconteceu: muitos anos depois, desde nossa separação, recebi outra carta de Maria dos Anjos, agora assinando Irmã Maria Angélica. Convidava-me para a solenidade de seus "votos perpétuos", sua entrada, para sempre, na Ordem religiosa que escolhera. Compareci.

          8. Na igreja, do meu canto, vi a Irmã Angélica entrar, procurando, com os olhos reluzentes, alguém. Olhava para todos os lados, menos para o altar mor, iluminado e florido. Até que nossos olhos se cruzaram. Ela sorriu levemente, devolvendo-me a menina de nossa cidade... Não trocamos uma só palavra. Nossos olhos falaram por nós dois. Vi Maria dos Anjos, irmã Angélica, pela última vez, de costas, entrando, devagarinho, na sua santa clausura, como se estivesse entrando no céu... Era um dia qualquer de maio...  

 

         

 

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/05/2022
Reeditado em 03/05/2022
Código do texto: T7506954
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