Sampa é um mundo diverso, cada lugar é quase um País

Quando ouvia as canções que falavam da Bahia ou as dos cariocas louvando suas ruas e praias, eu ficava querendo escrever canções sobre a minha rua, meu bairro, falar de São Paulo, da Brasilândia, da Freguesia do Ó, Lapa etc., lugares que conhecia e freqüentava. Isto não era comum quando eu era jovem, até que Caetano Veloso rebatizou a cidade de Sampa e falou de nossas ruas.

Parece que paulistano tinha (ou tem) vergonha de declarar seu amor à Cidade, expor, citar, louvar, xingar, ser piegas. E daí? Muitas vezes deixamos de prestar atenção aonde vivemos ou convivemos. A pressa. Ah! Pressa aflita, que não nos deixa ver detalhes, nuances que depois ficam só na lembrança: os bonde pelo meio da Av. São João, subindo a Av. Angélica, pela ruas da Lapa... Parece que não existiram.

Hoje eu tenho um jeito todo especial de subir as ladeiras da Freguesia do Ó, de olhar os jovens na praça, o jeito do povo andar no meio das ruas na Vila Brasilândia, sentir o burburinho da Lapa, às 18h30. São jeitos que a cidade tem, e que pouco detalham, vêem os entalhes, os frisos, os risos e os choros da Cidade.

Trabalhei anos no Bom Retiro, e na hora do almoço ia ver vitrine, gente nas ruas, observar os judeus ortodoxos e suas rencas de filhos, seus cabelos exóticos, casacos pretos em pleno verão. Almoçava às vezes no Acrópole, de judeus gregos, mas nem mais me lembro o nome do dono, que nos atendia à porta. E lá ia escolher o prato na boqueta da cozinha – ali não há cardápio. Diferente.

Depois trabalhei no bairro da Luz, em plena cracolândia, e foi um choque: na primeira semana um morto na porta do prédio do Largo do Osório. Crianças no craque, estiradas no meio fio. Ao meio dia, uma volta no quarteirão da Santa Ifigênia pra ver contrabando, putas e travecos expostos em pleno meio dia. Vez ou outra almoçava no boteco da esquina: bife de fígado, arroz, feijão e salada, a três contos e quinhentos. Só pra chatear.

Cai depois pelos lados da Barra Funda, Theatro São Pedro, outro mundo. Me perdia nos sebos sujos do pedaço, revirando livro e CD. Almoçava na padoca, eqüina com a Avenida São João, dava uma volto do quarteirão e só tinha oficina de auto. Ao meio dia, de terça, dia do projeto Terças Musicais, e lá íamos todos, do diretor ao office boy, laçar povo, de macacão ou terno, dona de casa vindo da feira, criança e mãe vindos da escola e quem passasse, para assistir música erudita, árias de ópera. Cultura. Diferença - e o povo entrava, via e gostava.

Hoje ando pelo Bixiga e muito pela colina do Ó, minha Freguesia. Às vezes fico tomando sol na praça, vendo os aposentados jogando malha, dominó. Depois saio a mil, para a Bela Vista, tarantela com samba, cantina com Vai-Vai. Observo os vagais (não se pode dizer mais vagabundos, tem patrulha) que dormem no abrigo da Prefeitura, que abre às 18h30, mas eles chegam às 9 da manhã e ficam por ali, na espera. É duro!

Acho que preciso apurar meu olhar. Tem tanta vida por ali, preciso me armar de mais letras e palavras pra abraçar tantos mundos diversos, respirar fundo, mergulhar na loucura do Centro, Anhangabaú, Viaduto do Chá à frente, todo dia ando por ali e busco volitar inteiro, lúcido. É muita verdade exposta, muita memória viva, que depois uma obra do metrô destruirá, um novo prédio, ou o tempo levará, ficando só a memória, na crônica, na poesia.

Às vezes penso: Pô! trabalhei na Rua Major Sertório e via, sempre, Adoniran Barbosa sentado no banquinho, anos 70, na porta do boteco, por ali fazendo hora, fazendo poesia. E eu não parei nenhuma vez para falar com ele, na pressa. Amanhã eu falo, até que ele se foi e eu fiquei sem ter este prazer, de trocar idéia com um gênio popular. Memória. Detalhes, como o mendigo na porta