O meu navio

O meu Contratorpedeiro Mato Grosso

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Trago em mim marcas de zarcão, defensas de sisal, parada para período normal de reparos, quando o navio vai ao dique para fazer ultrassonografia do casco para verificação da existência ou não de fissuras no ferro, depois da retirada das cracas com jateamento de areia, ou, o que dá no mesmo, dos mariscos grudados no casco.

Já era, então um navio cansado, navio de bico fino, com bochechas de boreste e bombordo fechadas na quilha; quilha que, ao cortar o mar calmo, fazia um bigode surgir na linha d’água, depois do mar-alto capaz de lavar a proa e adernar o navio para lá e para cá. Lembro dos exercícios de tiro, das torretas cuspindo fogo, nos exercícios de guerra sobre a ilha de Alcatraz.

O meu navio não cumpriu o destino pouco nobre de outras naves, não viu seu ferro ser cortado para no fim de tantos cortes ver suas lâminas transformadas naquelas de barbear vendidas nas farmácias. Não, o Contratorpedeiro Mato Grosso naufragou após ser canibalizado, quando as estruturas nobres são retiradas para se prestarem a peças de museus, talvez.

O meu navio foi partido ao meio, antes de ir ao fundo do mar-alto, por um míssil Sea Cat. Míssil que vi, desde o meu navio, ser atirado em perseguição a um alvo pendurado num balão, antes que perdesse o prazo de validade – o míssil.

A enfermaria onde exerci a função de médico de bordo era imediatamente à esquerda do portaló. Nela vi marujo entrar, orgulhoso, bater continência para mim tenente médico, então, e dizer alto e bom som: Doc, estou com gonorreia, cumprindo, assim, seu rito de iniciação e virilidade.

Era costume naval, depois de um porto, ao terceiro dia de viagem de retorno, o rancho ser carne de porco, na mitificação de que a carne porcina fizesse descer a doença mais rápido.

Vi também aqueles que, ao chegarem no porto distante, baixavam terra com os bolsos cheios de fichas para orelhão, a fim de ligarem para suas esposas amadas, sem se envolverem com as xibas ou Marias de cada porto. Esses, sim, admiráveis.

Mais admiráveis que Ulisses, porque sabiam esperar e compreendiam a espera de suas Penélopes.

Fui médico desses homens em longos dias de mar. Desci à caldeira para hidratar os maquinistas, calor humano. Fui campanha da marujada. Transformei punições disciplinares em aconselhamentos, fui espirito de corpo.

Deixei para sempre de ser médico escondido atrás do jaleco. Jantava com meus pacientes. Descia às cobertas para as inspeções de escaninhos, para ver se havia gatos neles, ou cachaça.

Nunca vou esquecer do Bactéria. Ele era vegetariano e por causa disso recebeu o epíteto. O Bactéria era muito simpático, deitava relaxado na sua maca. Não ligava para as chacotas.

Eu que não vou comer manto sagrado – como era chamado o bolo de batatas recheado com carne.

Convivi com marujos de todos os cantos do Brasil advindos, seus costumes, inclusive os da turma do engodo, que fazia bolinhos com farinha, feijão e outras viandas e os comiam com as mãos.

O oficialato e a marujada compunham a alma do navio que vi ser cortado em duas partes por um míssil Sea Cat.

É nobre ter um pedaço da alma no fundo do mar.

Meu navio teve um fim nobre. Nem todos conseguem isso. O Contratorpedeiro Mato Grosso é um exemplo para mim. Foi à guerra da Coréia, era um navio ágil. Continuou a ser após ser comprado pela Marinha do Brasil. Nossa Marinha.

Meu navio não teve o fim ignóbil do Titanic. Meu navio morreu de eutanásia.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 25/09/2023
Código do texto: T7893856
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