MÉXICO 70

No início da década de 70, os chamados “anos de chumbo” do golpe militar de l964, governo Médici, auge da repressão. Naquele tempo cursava o 3º ano da Faculdade Católica de Direito de Santos/SP, a gloriosa “Casa Amarela”. A situação reinante na cidade era no mínimo confusa, agravada pelo fato de Santos ter a fama de reduto de esquerda no Estado, com movimento sindical atuante, politizado e o maior porto exportador de café do mundo. Ademais, a própria região que forma a “Baixada Santista” é sede do complexo petroquímico de Cubatão, com a Refinaria Presidente Bernardes e a COSIPA -Companhia Siderúrgica Paulista, além de outras indústrias como a RHODIA, Dow Química, Ultrafertil, etc.. Por isso, o município foi declarado “Zona Segurança Nacional”, sendo governado muito tempo por Interventores Federais, escolhidos pelo Governo Militar.

Naquela época, nem se imaginava internet, sites , e- mails e a comunicação se fazia basicamente por rádio-amador, telefone e carta. A televisão ainda estava no início e a programação era transmitida em branco e preto, para uma “seleta” platéia. Como a maioria, eu ouvia rádio e me comunicava por Cartas e Cartões Postais, que acredito deviam ser monitoradas de alguma forma. Não obstante, não integrasse ou militasse na “esquerda”, era universitário, mantendo contato com pessoas de vários Estados do Brasil e, bem como, de alguns países da América do Sul e do Norte (México).

Uma noite( sempre fui notívago), “lá pelas tantas”, estava “navegando” nas ondas do rádio, quando sintonizei na freqüência de “ondas curtas”, uma emissora de Belo Horizonte -MG, mais precisamente a Rádio Guarani, que transmitia madrugada a dentro um programa cultural, onde eram lidos textos poéticos enviados pelos seus ouvintes espalhados pelo Brasil inteiro. As poesias eram interpretadas nas vozes maravilhosas do casal de radialistas que comandava o programa e acompanhadas com fundo musical romântico.O programa patrocinado por uma papelaria de BH, incentivava a troca de correspondência entre os ouvintes, por cartões postais. Diariamente eram divulgados endereços dos participantes, nos diversos pontos do Brasil e do mundo.

Certa vez, lá por 1971, consegui o endereço de uma ouvinte mexicana, cujo nome “ a marcha dos anos “ me fez esquecer.Lembro-me, no entanto, que cursava a Faculdade de Filosofia de Guadalajara, cidade onde o Brasil, um ano antes, houvera se sagrado tri-campeão mundial de futebol. Embora o “castelhano” falado no México não fosse “o meu forte” , o certo é que desde o início a comunicação fluiu fácil de ambas as partes, e pude exercitar o meu “portunhol”

As cartas , principalmente as remetidas para minha “chica”, eram entremeadas de poesia, letras de música, informação sobre Santos e sobre o país de modo geral. Já a correspondente mexicana enviava-me Cartões Postais, com fotos do tamanho de mini-posters da sua Guadalajara, apresentados em papel de alta qualidade que, na época, não via similar no Brasil. De minha parte, contra-atacava com pequenos cartões comprados na banca de jornal da esquina, com paisagens as mais variadas de Santos, de Brasília e da insuperável e plástica beleza do Rio de Janeiro ( Cristo Redentor, Urca,, Pão de Açúcar e Baia de Guanabara), além de textos recheados de Vinicius, Drummond, Raul Seixas, etc. e, também, alguma coisa de minha lavra.

Certa ocasião, recebi uma de suas cartas, escrita como sempre com letra impecável em papel personalizado e, acompanhando a correspondência, duas fotografias com imagens de alta definição do “Teatro Degolado” de Guadalajara. Uma verdadeira obra de arte. Entre outras coisas, havia um fato que me chamou a atenção, dizia respeito ao pai dela. Segundo me confidenciou, a parte geral das minhas cartas, onde eu apresentava textos literários, comentava assuntos culturais e políticos, estava sendo aproveitada como material didático nas aulas da Universidade, onde seu pai era professor de língua portuguesa, o que me deixou muito envaidecido e, ao mesmo tempo, preocupado.Só sei que nada mais foi como antes...

Nosso relacionamento esfriou de vez, quando uma das cartas que remeti não chegou ao seu destino. Creio deva ter sido interceptada por algum “araponga” de plantão, infiltrado nos Correios, e que já vinha monitorando as minhas cartas. A desconfiança não era gratuita, tinha uma certa razão de ser. O conteúdo do envelope, em papel pardo, tamanho grande, desta feita levava além da inofensiva correspondência, um material de “grande valor” para colecionadores. Tratava-se de autógrafos de grande parte dos jogadores do Santos Futebol Clube, campeões do mundo, entre eles o do Pelé. Havia também, isto era mais raro, dois selos com a efígie do “rei do futebol”, que eu consegui com um dos meus irmãos que é filatelista e que me garantiu não seram fáceis de se obter.Procurei os Correios, à época, e ninguém soube me informar nada a respeito do corrido. O envelope simplesmente sumira e com ele os presentes para minha “chica”. .

Depois do episódio, as cartas foram escasseando, até que o relacionamento cessou. Ficaram apenas os escritos e os postais com imagens belíssimas, que o tempo também se encarregou de consumir. O que, na verdade, restou daqueles “anos de chumbo”, para mim “anos dourados,” foi um sentimento de perda e de saudade que ainda hoje, às vezes, teima em se fazer presente, mas é logo substituído pela magia eletrônica de uma mensagem que me chega por E-mail.

EMILIO CARLOS ALVES
Enviado por EMILIO CARLOS ALVES em 04/01/2006
Código do texto: T94539