IRMÃ LEOPOLDINA...

Este conto NÃO É UM “CONTO”, NÃO É FICÇÃO; é apenas um relato. É o que aconteceu comigo, em julho de 1982, na capital gaúcha, Porto Alegre.

Tendo sido acometida por um sério problema circulatório, meu médico (residia eu, na época, em uma cidade da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, cidade de porte médio) recomendou-me que fosse à Porto Alegre, a um determinado hospital, para fazer uma angiografia cardíaca, com contraste, e que esta acompanhasse todo o meu sistema arterial e ainda um cateterismo; avisou-me que, talvez, fosse necessária uma cirurgia cardíaca e que os exames solicitados eram de alto risco. Eu sofria de esfriamento nas extremidades (pés, mãos), cianose, falta de irrigação cerebral por alguns momentos, o que, às vezes, me levava ao desmaio. Gelava e ficava totalmente roxa e suando frio. Sentia uma forte dor no peito e perdia os sentidos.

Tinha eu, então, 30 anos, um casal de filhos, a menina com oito anos e o menino com cinco.

Morava já com meus pais e possuia um casamento de “aparências”.

Fui, então, para Porto Alegre.

Chegando ao Hospital, fui tratada de modo carinhoso e competente por todos, desde as Recepcionistas até os Médicos, Enfermeiras e Atendentes. Meu plano de saúde me permitia um quarto privativo, uma suíte; mas como eu iria ficar só, pois meu pai trabalhava e minha mãe ficara tomando conta dos “pequenos”, e meu “marido” disse que não ficaria comigo no Hospital, pois “detestava” Hospital!”, solicitei ficar em um quarto onde houvesse outra pessoa, para que eu não me sentisse só. Com toda a gentileza, levaram-me a um excelente quarto, com banheiro privativo e onde havia quatro camas, mas apenas uma estava ocupada: era uma senhora idosa, rica (pelo que pude perceber depois) e que estava ali porque, por seu temperamento irascível, era impossível ficar com a família, que, a todo momento tinha um ou uma de seus “representantes” presentes, para que a idosa senhora não se sentisse só.

Fui recebida com um sonoro:

- Droga! Quem é que vocês vão botar aqui comigo?? Não quero ninguém que tenha doença contagiosa! Estou particular, pagando! Não quero ficar com “qualquer uma” no quarto!...

A gentil e educada enfermeira (ou atendente, mas que atendia pelo nome genérico de “enfermeira”) disse-me baixinho:

- Professora, não leve a mal. Mas já que a senhora não quer ficar só, este é o único local vago que temos!...

E virando-se para a anciã, disse-lhe carinhosamente:

- Vovó, esta moça é professora, veio do interior e precisa fazer uns exames complicados. Não se preocupe, ela é uma pessoa educada.

- NÃO SOU TUA AVÓ, menina atrevida!!...E...Quem me garante??... Não sei de onde ela saiu?!...

Como sempre gostei de pessoas idosas, comecei a tentar um entabular um assunto com a velha senhora, mas ela virou-se para o canto e nada respondeu. Não me importei. O quarto era espaçoso, as quatro camas bem colocadas, duas no sentido norte e duas no sentido sul. Ao lado de cada cama, havia o criado mudo, os “famosos degrauzinhos” para se ter acesso à cama e uma cadeira, muito confortável. Havia mais quatro cadeiras mais simples no recinto e armários embutidos, ao lado de cada cama. Fiquei em um leito ao lado de uma janela, que dava para um lindo e bem cuidado jardim, apesar de ser julho e os invernos serem rigorosos no sul do Brasil. Logo chegaram alguns parentes da velha senhora e me perguntaram quem eu era, o que fazia, de onde tinha vindo e por que estava ali. Dadas as devidas explicações, coloquei as fotos de meus filhinhos sobre o criado-mudo e outras do lado do meu travesseiro. Tudo transcorreu tranqüilamente, até que anoiteceu. Os parentes da anciã foram embora, e, como eu tinha levado meu Livro de Orações, comecei a fazer minhas preces vespertinas. Acendi a luz de cabeceira e ouvi um sonoro e estridente grito:

- Não! Apaga essa luz! Quero dormir!! Apaga, apaga!!

Tranqüilamente apaguei a luz do abajur, sem falar coisa alguma, e virei-me para o lado da janela, onde estava também o criado-mudo com as fotos de meus filhos.

Começou a chover. Estava muito frio. Eu estava me sentindo terrivelmente só. Sabia do risco que iria correr no dia seguinte; pensava nos meus filhinhos, nos meus pais que eram já de idade avançada e que, um dia, precisariam do meu cuidado. E se eu morresse?... Medo de morrer eu não tinha. Mas quem cuidaria de meus pais e meus filhos??... Comecei a chorar baixinho, abraçada nas fotos que havia trazido comigo... A noite foi chegando lentamente. Eu não deveria comer coisa alguma, até a realização do procedimento, que seria ma manhã seguinte. Comecei a sentir sede. Pedi a Deus que não me levasse ainda, a menos que tivesse uma pessoa boa para cuidar de meus pais e meus filhos...

A velha senhora, a todo o momento, apertava a campainha para chamar alguém da enfermaria. As moças a atendiam e ela as tratava mal:

-Oh, guria! Ajeita direito este travesseiro!

- Mas vovó, eu agora mesmo ajeitei!

- Mas está uma droga! E eu não sou tua avó!

E a moça, pacientemente, ajeitava.

Mal a moça saia, a velha tornava a rodopiar na cama e a grudar-se na campainha. Quando a atendente chegava, dizia-lhe:

- Tapa minhas costas, incompetente!! Eu estou pagando vocês! Me atendam como eu quero e não resmunguem!

Com toda a educação, a moça sorria, fazia o que ela pedia e quando estava saindo, a velha jogava o travesseiro no chão e lá ia para a campainha!

- Que foi vo... senhora? - corrigiu-se rapidamente a moça.

- Burra, não ajeitaste o travesseiro direito e ele caiu no chão!

Depois de muitas destas incursões, lá pelas 22hs, com o calmante que trouxeram, a velha dormiu. Antes, resmungou:

- A gente tem que estar de olho, de olho, nestas raparigas!

Mas, graças a Deus o sono a venceu. Fez-se silêncio no Hospital.

Embora revoltada com as atitudes da velha, percebi que elas tinham preenchido o tempo. Mas agora eu estava sozinha... Comecei a pensar, a olhar as fotos na semi-escuridão e a chorar baixinho... Tinha sede... Estava só... Rezava, mas continuava me sentindo só. Lembrava-me do princípio de um Salmo: “Para os montes elevo meus olhos; de onde virá o meu auxílio? O meu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra...” Era um salmo que cantávamos na Igreja, que meu irmão havia musicado, há muito tempo...

Ouvi um barulho na porta do quarto e percebi que entrou alguém; nem me virei, pensei que era a atendente para dar mais algum remédio para a velha. Mas percebi que um vulto parou ao lado de minha cama. Então, me virei.

Era uma freira (Irmã de Caridade) que me perguntou com voz meiga e um sorriso:

- Por que estás chorando, minha filha? Estás com medo? Não tens fé?...

Comecei a contar-lhe minha história. Ela puxou a cadeira para perto da cama, sentou-se e ouviu minha história. Disse-me que queria ver as fotos que eu havia levado e que podia acender a luz que estava no criado-mudo, porque a senhora idosa só iria acordar pela manhã.

Ao acender a luz, pude ver sua fisionomia, envolta nos véus brancos do Hábito. Perguntei-lhe se era uma freira católica; disse-me que não, que era uma freira luterana, que o Hospital tinha sido criado por uma comunidade luterana e que havia muitas freiras luteranas no início, mas “...com a Modernidade, já não se vêm vocações para freiras!” Percebi que ela era uma das últimas remanescentes...

E ela ficou ali sentada, toda a noite, com seus tranquilos e sorridentes olhos azuis e um sotaque puxando para a a lingua alemã, conversando comigo, rezando comigo; pouco antes de o dia amanhecer, ela me disse:

- Pega teu robe e vamos até a Capela.

- Posso? Tem capela?

- Podes. O procedimento não será hoje, será amanhã. Tu precisas estar calma e confiante.

Fomos a uma pequena Capela, muito bonita, mas pequena, dentro do Hospital. No altar modestro, mas lindamente adornado com flores, havia uma Cruz de madeira, vazia, e duas velas brancas acesas, em castiçais também de madeira. Havia um vitral (vitroux) muito bonito encimando o Altar: Nossa Senhora e o Menino Jesus! Dos lados, formando no conjunto um Tríptico, havia mais dois vitrais menores. O que me chamou atenção foi o do centro: pensei nos meus pais, nos meus filhos... e chorei. A carinhosa Irmã me abraçou: parecia tomar-me no colo, como Nossa Senhora ao Menino Jesus. Fiquei confortada.

Um relógio bateu seis horas; ela me disse, mansamente:

- Vou te deixar no quarto, pois outros precisam de mim. Mas logo à noite eu volto.

Levou-me até o leito, me ajeitou na cama, tapou-me e me deu um suave beijo na testa e disse:

- Deus te abençõe! Mas teu exame não será hoje. Descansa!

- Irmã Leopoldina - este era seu nome - a senhora não vai dormir agora? Ficou toda a noite comigo. Agora a senhora vai dormir, não vai?

- Não te preocupes comigo, minha filha! Deus cuida de mim!

Logo que a freira saiu, a velha acordou e pôs o dedo na campainha! A moça custou um pouco a chegar, e ouviu todo um palavrório ofensivo e de baixo calão! Alguns eu nem conhecia...

Pouco depois veio outra atendente e me trouxe o café. Disse-lhe que deveria ficar em jejum, ao que ela respondeu:

- Não, o seu procedimento no Bloco não será hoje. A Equipe está atendendo uma emergência; ficará para amanhã. Assim que o seu médico se desocupar, ele vem aqui lhe explicar.

Pensei: “bem que a Irmã tinha razão!” Claro, certamente ela sabia que o médico estava ocupado, pois seu Hábito branco demonstrava que era também enfermeira. Tomei café e, depois do café, dormi até às 11h30min quando me trouxeram o almoço. Por volta do meio-dia, o médico veio informar-me por que os exames ficariam para o dia seguinte. Daí a pouco, veio-me ver uma enfermeira e avisar que meus pais tinham ligado e que elas não quiseram me acordar, mas disseram-lhes que eu estava bem e que o Procedimento seria no dia seguinte. E eles tinham dito que estavam rezando por mim e que as crianças estavam bem.

Dormi toda a tarde, abraçada às fotos de meus filhos e pais. A atendente que servia o café, não quis me acordar, pois pensou até que eu estava sedada. Às 18hs acordei para o jantar e fui avisada que, após, não poderia comer coisa alguma; nem tomar água.

Eu estava muito tranqüila. Havia dormido bastante, e tão profundamente, que não tinha ouvido os impropérios da velha. Só os ouvi quando acordei para jantar! A velha resmungava sozinha, que “os filhos a tinham abandonado, que ela havia dado estudo a todos, que eles queriam que ela morresse para ficar com a herança, que não se importavam com ela”. Penalizada, dirigi-lhe a palavra, dizendo que ela não estava “abandonada”, pois seus filhos trabalhavam e vinham vê-la sempre que podiam.

- Cala a boca, rapariga! Eu não te conheço!! Cala a boca!

Fiquei magoada e quieta: eu só queria ajudar.

Pelas 21h30min, mais ou menos, deram-lhe um sedativo e ela dormiu! Pouco depois, chegou a Irmã Leopoldina!

- Irmazinha, que bom que a senhora veio!

- Eu disse que viria, não disse?...

Agradeci-lhe por ter-me avisado que o Procedimento no Bloco Cirúrgico seria na manhã seguinte e disse-lhe, envergonhada, que “só tive certeza quando a moça trouxe o café!”

Ela sorriu para mim e disse que isso era normal. Começamos a conversar: contei-lhe mais um pouco de minha vida. Após, ela contou-me a sua: tinha vindo para o Brasil com seus pais antes da II Guerra e ficaram radicados em São Leopoldo (hoje, parte da Grande Porto Alegre). Trouxe-me umas fotos antigas e amareladas de seus pais e irmãos, na Alemanha e aqui. Pude ver o quanto ela tinha sido bonita quando jovem (deveria ter uns 50 anos, mais ou menos, é difícil adivinhar a idade de uma freira debaixo do Hábito e de todos aqueles véus) e perguntei-lhe por que não quis casar. Disse-me que, desde menina, tinha um grande amor na Alemanha, eram companheiros de Igreja desde crianças, mas ele morreu na guerra.

Seus olhjos azuis brilharam e ela disse:

- Hoje ele sempre está comigo! Por isto sirvo a Deus. Amo a Deus amando todas as pessoas, e a todas elas dou o carinho que gostaria de ter dado ao...

Disse-lhe que era linda a sua história; aí ela começou a conversar comigo sobre Teologia e Filosofia, sobre guerra e o que leva à guerra, sobre pacifismo e perdão.

Em determinado momento disse-lhe que tinha sede; ela tirou do bolso do Hábito um saquinho com gaze, e foi molhando meus lébios carinhosamente, como se faz a uma criança. Disse-lhe que gostava de cantar e que havia cantado no coral de minha Igreja. Ela perguntou-me se eu sabia o Hino de Lutero: disse-lhe que sim, e que gostava muito do CASTELO FORTE (nome do mais conhecido Hino composto por Lutero, letra e música). Ela, com uma voz doce e melodiosa, cantou baixinho para mim... e eu dormi. Senti seu beijo em minha testa. Meio acordada e dormindo, perguntei-lhe se ela estaria “lá” comigo. Ela me respondeu que não atuava mais no Bloco, mas que iria lá para me “dar coragem!”

Lembrou-me que tivesse Fé, pois quem tem fé “agrada a Deus” e ter fé significa “não ter medo”! Tornei a dormir. Mas por pouco tempo.

As Atendentes vieram me buscar: colocaram-me na maca e me levaram, delicadamente, para o Bloco Cirúrgico. Após o devido preparo, calma, fui de maca para a Mesa. Fizeram-me tirar as lentes de contato, de modo que pouco podia ver, pois minha miopia é alta. Podia perceber, entratanto um bom número de médicos que participariam do Procedimento. Meu médico explicou-me que trabalhava em Equipe, apresentou-me os outros médicos e explicou-me que eu não poderia ser sedada, pois teria que dar respostas durante o procedimento; entretanto, após este, o Médico Anestesista iria me aplicar uma sedação, porque haveria um corte na artéria femural e, como esta não poderia ser suturada, eu deveria ficar imóvel, por, pelo menos 12hs, evitando assim hemorragia. Disse-me ainda que seria colocada uma sonda na uretra e que, portanto, eu não me preocupasse, pois não iria urinar “na cama”. Os médicos brincaram comigo, pois eu estava “calma porque vinha da 'fronteira' onde as mulheres são bonitas mas são 'de faca na bota', corajosas, acostumadas a lutar e muito brabas”. Respondi-lhes que estava calma porque Deus estava comigo e minha vida pertencia a Ele, e o que acontecesse comigo seria sempre o melhor, pois “Deus não nos dá o que queremos, mas o que necessitamos”! Alguns riram... Outros sorriram, compreensivamente.

Senti uma forte dor na coxa direita e senti o sangue quente junto a pele; depois um fincão. Quando o líquido do contraste foi introduzido em minha artéria, senti como se um fogo infernal percoresse meu corpo e, subindo do local do corte na coxa, quando atingia a região da cintura, eu tinha a impressão de que, literralmente, estavam me serrando ao meio! Que horrível dor!! “Será que eu vou resistir?” pensei. “Meu Deus, não estou nem aí pra mim, mas cuida dos meus filhos e meus pais!”

Nisto, olhei para um lado e vi a Irmã Leopoldina, com seu hábito muito branco, com os véus que só deixavam ver sua face, e seus olhos azuis tranqüilos e sorridentes. Senti muita paz. Ela, cumprira a promessa, mesmo sem trabalhar mais no bloco, estava ali.

Não sei quanto tempo demorou a “sessão de tortura”. Diziam “Falta só um pouquinho; não te mexe; respira; enche o peito; não respira;” e era uma infinidade interminável de dores. Eu senti as dores, mas não senti medo. Sabia que tinha uma amiga me cuidando...

Depois de muito tempo, “mede a pressão; está caindo; os batimentos estão parando; prepara o desfibrilador! Melhorou; está voltando...” O meu médico chegou perto de mim e disse com uma espécie de lanterna e abriu meus olhos e focou a luz.

- Estás me enxergando? Podes falar?

- Sim - respondi-lhe. - Quando vai terminar?

- Já terminou. Foste valente, “guria!” Agora vais ser sedada e vais para a Recuperação. Vais ficar lá por, no mínimo, doze horas e, por favor, não mexe a perna direita!

Olhei para o lado, e lá, quietinha, estava a Irmã Leopoldina e, sorridente, me fez um sinal, apontando para ela mesma, dando a entender que ela estaria lá comigo. Eu queria pedir a ela para que ligasse a meus pais, pois, certamente, junto aos meu pequenos, estariam preocupados, mas... não deu tempo: senti uma ardência na veia do braço esquerdo e... adormeci.

Quando acordei senti uma náusea e uma sede muito grande. Quis levantar a cabeça, mas uma mão suave, impediu-me que eu me movesse.

- Minha filha, tens que ficar quietinha.

Caí de novo em um sono profundo.

Quando acordei pela segunda vez, vi um rosto suave, com lindos olhos azuis, debruçado nas grades da cama da Sala de Recuperação. Era a minha amiga e companheira!

- Irmã, avisaram meus pais e meus filhos que “sobrevivi”? (Sempre fui alegre e brincalhona. Ela riu ante o gracejo!)

- Filha, entraste para o Bloco às 7h30min e saíste quase às 14hs. No momento em que te sedaram, fui ao telefone e avisei teus pais que tudo tinha acabado, que estavas bem e que o resultado do exame não deveria preocupá-los. Eles e teus filhos estão bem, mandaram beijos e disseram que estavam orando por ti! E eu disse que iria cuidar de ti e que eles não se preocupassem.

- Mas, Irmã, a semhora não sabia o número do telefone.

- Para que tu achas que se faz ficha quando um paciente recebe uma baixa hospitalar?...

Sorri, aliviada. Perguntei:

- E meu marido, já sabe que estou bem?

Os olhos da Irmã tingiram-se com uma sombra:

- Filha, não teve viva alma aqui no Hospital perguntando por ti... De tua cidade, várias pessoas ligaram, amigos e amigas, comunidade da Igreja, professores e professoras, teus colegas. Mas teu marido não esteve aqui nem ligou para cá. Lamento...

- Irmã, isso não me surpreende...

- Eu sei. - respondeu-me ela.

Segurou minha mão que estava sem o soro e disse:

- Vamos agradecer a Deus!

Orou tranqüilamente, com voz calma e suave. Disse-me, então:

- Filha, tem outros pacientes precisando de mim. À noite te verei no quarto; as moças já estão vindo para te levar para lá.

Atirou-me um beijo e saiu de mansinho.

Fui para o quarto. Já havia anoitecido e a velha senhora não estava resmungando, já devia estar sedada, pois estava quieta. Trouxeram-me uma vitamina com leite, aplicaram-me uma injeção e eu dormi de novo.

Era madrugada quando eu acordei. Ela estava ali, parecia cochilar sentada na cadeira. Pensei: “não vou acordá-la”. Mas ela abriu os olhos e sorriu.

- Irmã, a senhora não dorme nunca??

- Já te disse, minha filha, que Deus cuida de mim! Como estás?... Como foste corajosa e deste um belo testemunho, sem gemer ou reclamar, vou te dar um presente: falei com teus pais e disse a eles que, quando acordasses, mesmo que no meio da noite, eu iria ligar para eles e eles falariam contigo!

- Eu já posso ir ao telefone?

- Não! Aqui há uma tomada de telefone perto de cada cama e eu já trouxe e instalei. Só falta ligarmos.

- Não me lembro direito como se faz chamada interurbana a cobrar!

- Não vais ligar a cobrar. Eu já acertei na Portaria. Eu ligo e quando eles atenderem, eu te passo o telefone.

Foi um a alegria imensa ouvir a voz dos meus pais! Não deixei acordarem as crianças, mas conversei bastante com eles!

Terminada a ligação, a Irmã me disse:

- Minha filha, quando amanhecer o dia, terei de viajar. Há uma enchente em São Leopoldo, e meus familiares estão precisando de mim. Amanhã terás alta. Já localizei teu marido e o avisei. Só quero que me prometas uma coisa: se o teu médico te disser que terás de fazer uma cirurgia de emergência no coração, não faz! Ouve o que ele te disser, mas não faz a cirurgia e volta para casa!

Rezou comigo, me beijou na testa, olhou mais uma vez a foto de meus filhos e pais e disse: “Deus os abençõe!”

- Irmã, deixe seu endereço ou telefone para que eu lhe possa escrever.

- São os do Hospital!

- Não vou vê-la de novo? - disse com os olhos marejados de lágrimas...

- Se um dia precisares de mim, eu te acharei! Agora preciso ir!

Amanheceu o dia. A velha passou calma (creio que sedada!) Pelas 14h o médico chegou e me disse:

- Teu marido está lá em baixo. Uma Atendente vem te ajudar e podes descer. Já assinei tua Alta. Amanhã, às 15h no meu consultório.

Fiquei confusa; queria ir logo para casa.

Quando vi meu marido, perguntei se ele tinha acertado os telefonemas do Hospital. Ele me respondeu que não falaram em telefone algum e que ele não iria perguntar; já havia feito a reserva em um Hotel e o Taxi estava esperando.

As moças foram muito gentis comigo e me levaram até a porta da saída em uma cadeira de rodas, para não forçar a perna. Fomos para o Hotel. Em silêncio.

Chegando ao Hotel, deitei-me e pedi uma ligação para minha casa: falei com meus pais e filhos, expliquei-lhes que que ainda deveria consultar mas que, à tardinha do dia seguinte, voltaria para casa. A passagem de ônibus foi comprada e eu dormi em Paz, sentindo um pouco de dor, mas em Paz.

No outro dia, 15h fui ao médico. Meu marido não quis entrar.

Sentei-me à frente do médico. Ele abriu aquele imenso envelope branco; parecia que levava anos... e não minutos. Então, olhou-me:

- O resultado não foi bom. A senhora precisa realizar três cirurgias de urgência no coração. Está aqui sua Baixa. Vai voltar para o Hospital hoje, antes das 18h e já marquei para amanhã a primeira cirurgia.

- Não, doutor. Vou ver meus pais e meus filhos. Preciso vê-los e me despedir deles.

- Se a senhora não fizer estas cirurgias não nos responsabilizamos. A senhora sabe o que são cirurgias de emergência? Estamos em julho; se a senhora não voltar no máximo até segunda-feira, em novembro estarei assinando seu Atestado de Óbito. No máximo, a senhora tem quatro ou cinco meses de vida!

Eu senti como se estivesse escorregando na cadeira e ficando pequenina. Parecia que eu ia morrer naquela hora mesmo!

- Doutor, eu tenho 30 anos! Não vou para Hospital nenhum sem ver meus filhos e meus pais!

- A responsabilidade é sua, não minha!

- Doutor, o senhor não é Deus!!

- E a senhora pensa que é cardiologista ou angiologista?? ...Ah!...E a senhora é daquelas beatas que ainda acreditam em Deus!.,.

Levantei-me. Quando cheguei na sala de espera, meu marido, que lia o jornal, disse:

- O que tu tens? Estás branca...

- Vamos embora, mas antes quero chegar no hospital para pegar o endereço e telefone dos familiares da Irmã Leopoldina em São Leopoldo!

Chegamos ao Hospital e fui direto para a Portaria.

- Ué, a senhora aqui de novo??

- Podes me dar o endereço dos familiares da Irmã Leopoldina, em São Leopoldo?

- Irmã Leopoldina? Quem é ela?

- É a Irmã que me acompanhou de noite, no quarto, no Bloco cirurgico e na Sala de Recuperação.

- Mas, professora... Aqui neste Hospital não existe freira alguma!

- Existe, sim. Ela me acompanhou todo o tempo.

- Mas não há freiras aqui!!

- Claro que há, menina! Deixas-me subir até o local em que eu estava?

Um pouco relutante, a moça pediu para uma outra me acompanhar no trajeto.

Fui até o Bloco Cirúrgico, à sala de Recuperação, à Enfermaria, à Sala de Preparo e todos me diziam a mesma coisa. Não era possível!! ELA havia estado comigo!! Ela esteve na sala durante todo o Procedimento! Eu não estava louca, nem era esquizofrênica!

Voltei a Portaria:

- Que história é essa? - Voltei-me para meu marido e lhe perguntei: - Quem ligou para ti avisando que eu daria Alta?

- Alguém que se identificou como Irmã Leopoldina.

- Não, nós não estamos os dois loucos! Se fosse só eu, mas tu ... Foi ela que levou o telefone para o quarto e ligou para meus pais, tanto depois do procedimento como na noite após ele!!

- Senhora, é IMPOSSÍVEL! Os quartos que tem saída para telefone são só os quartos individuais!!

- Vou voltar lá! Mas antes me diz, quem ligou para meus pais na minha cidade, dando notícias minhas?

- Senhora, aqui não há registro algum de telefonema dado pelo Hospital ou por ordem deste para ligações interurbanas. Nada consta em sua ficha. Não é um procedimento de rotina do Hospital.

Eu já estava quase chorando, achando que alguém não queria que eu soubesse o paradeiro da Irmã, decerto porque não gostavam das freiras!!

Cheguei no quarto com as quatro camas: lá estava a velha resmunguenta, no mesmo leito, azucrinando a pobre da enfermeira, porque a “injeção tinha sido mal aplicada!”

Fui até a cama perto da janela: vi a cadeira, o criado mudo...mas não vi tomada para o telefone. Arredei o criado mudo: nada! NÃO HAVIA TOMADA PARA TELEFONE!...

Senti-me sem chão!... Eu havia delirado ou estava ficando louca. Voltei à Portaria, mas antes vi que a moça que me levava as refeições estava com o carrinho, levando a janta para outros pacientes. Perguntei-lhe, desesperada, se tinha visto a Irmã Leopoldina.

- Não, senhora; aqui não há mais freiras há muito tempo! Mas... minha mãe trabalhou aqui, no princípio do Hospital, quando havia freiras. E ela falava muito em uma “Irmâ Leopoldina”, uma freira meio alemã, que era uma santa, que cuidava muito dos doentes, rezava com eles, passava as noites confortando e consolando os doentes. Mas ela precisou ir para a terra dela, São Leopoldo, e morreu ajudando a salvar um pessoal de uma enchente, há muito tempo, uma outra enchente tão grande como esta que está agora por lá!...

Trêmula perguntei:

- Quer dizer que também não há Capela neste Hospital?

- Há sim, senhora! São as senhoras da comunidade luterana que cuidam da capela.

- Onde é a Capela?

A moça me indicou e eu fui: era a mesma Capela que eu tinha ido... Sentei em um dos bancos. Olhei o vitral do centro... Por trás de Nossa Senhora e do Menino Jesus, havia um Anjo: todo vestido de branco e com os olhos muito ternos e azuis...

Naquela noite eu não tinha reparado no Anjo...

Eu não tinha explicação alguma.

Quando cheguei na rodoviária de minha cidade, a primeira coisa que fiz foi perguntar aos meus pais, entre beijos e abraços, quem os tinha avisado que tudo tinha corrido bem no Procedimento, no Hospital.

- Ah! Uma Irmã muito carinhosa, com um sotaque alemão, chamada Irmã Leopoldina! - disse meu pai. - E também ligou todos os dias para dar notícias tuas; ele é Luterana, a família é de São Leopoldo. Ela é uma mulher de muita fé, nos consolou muito, nos escorajou, nos confortou.

- Que horas ela ligou para dar notícia do procedimento?

- Era 2 horas da tarde, porque nem tua mãe nem eu conseguíamos almoçar sem saber notícias tuas! E ela é muito alegre e brincalhona!

- E no dia que falei com vocês, de madrugada, quem ligou e falou para o senhor que ia passar o telefone para mim?

- A Irmã Leopoldina! Disse que era um presente dela para ti ter levado o telefone até o quarto! Mas por que tantas perguntas?

- Nada, pai; nada, mãe!...

Entendi porque mesmo sem as lentes de contato ou óculos eu enxergara perfeitamente o rosto da Irmã Leopoldina, a ponto de ver-lhe os olhos azuis...

O fato é que “alguém” me acompanhou! “Alguém” ligou! “Alguém” orou comigo e me trouxe Paz. E eu segui o seu conselho: não voltei para “fazer as cirurgias de emergência!” Hoje, estou com mais de 50 anos!! Tive mais uma filha, de parto normal, aos 36 anos de idade e passei bem. Fiz o Curso de Direito, fiz um Mestrado e estou fazendo um Doutorado. E ninguém ainda assinou meu Atestado de Óbito...

Bendita Irmã Leopoldina!... Nunca esquecerei seu rosto, seus olhos, sua voz e suas orações...

Anjo?... Espírito Evoluído?... Santa?... Não sei. Mas sei que tinha que escrever este relato. É o mínimo que posso fazer para agradecer a Deus por estar viva e à “Irmã Leopoldina” por seu trabalho consolador, enviada por Deus, e que esteve junto de mim... Este é um testemunho vivido. Não é um Conto: é um Relato...

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ESPERANÇA
Enviado por ESPERANÇA em 21/05/2008
Reeditado em 04/05/2011
Código do texto: T999714
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