A CARA DESLAVADA

– para a Rosiane Terzi, estudiosa de Poesia, residente em Corumbá/MS.

“SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...

Quando se vê, já é 6ª feira...

Quando se vê, passaram 60 anos...

Agora, é tarde demais para ser reprovado...

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio.

seguia sempre, sempre em frente ...

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Mario Quintana (In: Esconderijo do tempo)”.

Esse "Seiscentos e sessenta e seis" é um típico exemplar de prosa poética e não especificamente poesia, a teor dos cânones tradicionais. Mario Quintana foi soberbo e ousado ao dar dignidade poética à prosa eivada de figuras de linguagem, seguindo a trilha aberta por Artur Rimbaud, Georg Trakl, Charles Baudelaire e alguns poucos, que a haviam instituído em oposição à modorra dos versos rimados, que até então vigiam consagrados e absolutos. Utilizando-se do andamento rítmico e plástico do verso desapegado ao tradicional, o poema em prosa tem a cara deslavada da modernidade, par a par com os seus desengonçados trejeitos. Os versos têm a cara dourada da “laranja mecânica”, o jeito descolado, irreverente, da juventude. Mario morreu absolutamente jovem, aos quase 88 anos...

– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2009/11.

http://www.recantodasletras.com.br/tutoriais/3079154