Discurso de Paraninfo
 
Discurso de Paraninfo Não deixa de ser extranho o fato de estarem os filósofos a promover a sua formatura. Não que a devessem evitar, recolhendo-se ao silêncio da reflexão abstrata e afastada das coisas comum -; mas é que a filosofia não pode admitir a ideia de formatura ou encerramento, de uma coisa definitiva, à qual só recorremos nos momentos de dúvida e indecisão para buscarmos conselho. A filosofia não é um conjunto de  fórmulas que possamos aprender; as cerimônias universitárias e os títulos acadêmicos nada lhe ascrescentamm, nem lhes conferem qualquer autoridade. Sua justificação há de encontrar-se em si mesma, nas questões que incessantemente coloca, nas interrogações que nem sempre encontram resposta, mas que decorrem, como admitia Kant, da inclinação do espírito parara as coisas talvez insondáveis. Ao invés, pois, de acabamento, o que caracteriza o saber filosófico é uma imperfeição essencial - uma " infinita tarefa" que a razão se dá a se mesma e que procura realizar  com plena lucidez e responsabilidade.
O costume impõe-nos um rito de formatura do qual dificilmente conseguimos escapar. Mediante uma festa, a sociedade sanciona o exercício de uma atividade e lhe atribui um lugar entre as demais profissões. No entanto, bem o sabemos, a filosofia não é uma profissão que se possa colocar entre as outras; na era da tecnologia e do desenvolvimento, não responde a nenhuma demanda do mercado, nem se relaciona com nenhum projeto de desenvolvimento. O papel que porventura desempenhe no progresso científico pode ser desprezado. Digamos de uma vez: não possui qualquer utilidade imediata.
A filosofia não é assim, um nec-otion do qual se espera obter rendimento. É essencialmente atividade de escola, quero dizer, da formação desinteressada e livre. O tema schola é a transliteração do termo grego oxoà,n, que significa ócio ou lazer: a escola é, em sua origem, o lugar em que se pode aprender a refletir, onde se pode teorizar, porque ali não têm vez as ocupações do comécio e dos negócios. Deste modo, não apenas a filosofia, mas também as ciências trazem desde o nascimento, há 2.000 anos, a marca de uma certa gratuidade, do prazer de ver e contemplar o espetáculo do mundo. Ora, o ideal grego de pensamento teorético não era de modo algum hostil aos problemas da cidade e de se governo; pelo contrário, o pensamento grego foi capaz de criar uma filosofia prática - Ética e Política - que nada tinha de subjetiva e alienada.
No que diz respeito às ciências, o seu progresso afastou-se da filosofia, criando, ao lado de uma metologia própria, novas áreas do saber. O projeto galileano da fisíca fundou um novo tipo de objetividade, definido por relações quantativas, deixando a filosofia o domínio não científico - porque incomensurável — da subjetividade. O mundo propriamente humano colocou-se deste modo à margem da ciência. Não cabe traçar aqui as etapas dessa separação. Notemos, apenas, o seguinte: o mundo humano, domínio da subjetividade, tornou-se o oposto do mundo "natural", do mundo objetivo da ciência. Surgiu assim a ambição de contrapor as ciências do espírito ou da cultura às ciências da natureza. A filosofia acompanhou a cisão: firmou-se, de um lado, como filosofia do espírito ou da consciência; do outro, como analítica da linguagem científica, isto é, "filosofia da ciência",
Essas duas tendências opostas dividem hoje o campo do saber. A tentativa de unificação, representada pela filosofia da ciência e pelo novo positivismo, havia fatalmente de sacrificar à exigência do método experimental o que há de especificamente subjetivo e espiritual. As ciências do espírito transformaram-se em ciências sociais, em sociologia, ou seja, em uma "física social" que inclui em si, como o desejava Comte, uma dinâmica e uma estática social. O nivelamento do mundo humano aos padrões da física significou, portanto, sua redução a um sistema de comportamento e atitudes observaveis, suscetíveis de medida e predição. Do mesmo modo que o projeto da física galileana continha implicitamente um projeto de dominação tecnológica da natureza, o projeto positivista das ciências sociais é inseparável da ideia de manipulação e transformação do mundo humano. Desta forma pode-se planejar o progresso social com o máximo de racionalidade e o mínimo de anomia.
O ideal de denominação da natureza, que inflamou a imaginação de Descastes e Bacon, tornou-se realidade. Encontramo-nos hoje diante de uma extrutura de dominação unificada, que emgloba a natureza e o mundo social. Mas suspeitamos que nossa vida é a conclusão das premissas daquele pensamento. O que nele havia de latente tornou-se manifesto - não o podemos ignorar.
Vivemos um acelerado processo de transformação. Dir-se-ia que a velocidade da mudança ultrapassa a capacidade de adaptação do espírito. Tornamo-nos muito velhos em um mundo impiedosamente novo. A diferença entre gerações tornou-se quase antagônicas; os valores estabelecidos, a autoridade e a tradição já não têm nenhum sentido para a geração nova. O que aprendemos na escola torna-se obsoleto em menos de uma década. Os mais jovens já não comprenem a linguagem que usamos; ela parece pertencer ao passado - "já era", como dizem; "não comunia" — pecado mortal na época da comunicação, da propaganda e do slogan.
Sinto que levantei - embora em linhas muitos gerais - mais problemas do que poderia resolver. Mas é melhor assim; as questões são aqui mais importantes que as respostas; e quanto a estas, talvez não nos seja dado encontrá-las tão cedo.
Referi-me, no início, ao fato de estarmos a festejar o encerramento de um curso de estudos filosóficos. A filosofia é uma "infinita tarefa", como assinalava Edmundo Husserl na sua obra sobre a Crise das Ciências Européias. Sendo assim, não podemos, de modo algum, dar nosso trabalho por encerrado. O mesmo Husserl dizia-se um "perpétuo iniciante".
São tais a amplitude, a dificuldade e a ressonância dos problemas filosóficos que a sua simples discussão — para não falarmos da solução parcial de algumas questões — exigiria uma comunidade de pensadores unidos pelo mesmo ideal de racionalidade e de fundamentação. A responsabilidade inerente ao trabalho do pensamento faz do filósofo um "funcionário da humanidade". Ao caracterizá-la, Husserl assim se expressa: "a responsabilidade puramente pessoal em relação a nosso próprio e verdadeiro ser como filósofos, em nossa íntima e pessoal vocação, traz consigo  a responsabilidade pelo verdadeiro ser da humanidade que, se puder efetirvar-se, so o poderá através da filosofia - por nosso intermédio, se formos verdadeiramente filósofos, com toda a seriedade". (Krisis, 7, p. 15).
O filósofo descobre os ideais da humanidade e os torna discerníveis; impede o seu encobrimento, comunica-os na sua verdade. É-lhe intolerante a repressão, que oculta a verdade, e a mentira, que a falsifica. 
Não é fácil nem tranquilo o seu trabalho. Erram aqueles que colocam a filosofia acima das lutas e sofrimento da existência, como se o filósofo fosse um ser abstrato feito de puro pensamento. O pensamento puro — a filosofia "pura" — é um mito. A coisa do pensamento é a coisa do mundo diz o "mais terrível" - (é como Sófocles,na Antigona, designa o homem); o pensamento é o mais alto perigo.
A função da filosofia é eminentemente crítica. O poder de reflexão é, antes de tudo, um poder de crítica. Os filósofos, a sociedade promove-lhes a formatura, mas nem sempre os tolera — esses eternos questionadores do óbvio, disticudores do indiscutíel e pensadores do que é proibido pensar; a filosofia tem também os seus mártires...
A época da técnica deixa entrever a total submissão da natureza aos poderes do homem. A liberação do trabalho servil deixou de ser um sonho e se anuncia como realidade. No entanto, nunca foi maior nossa derrelição. Trocamos a liberdade pelo conforto e pela segurança material, eximimo-nos de pensar e nos deixamos iludir pela propaganda dos bens de consumo. Na era da comunicação perdemos o uso da linguagem. Dizemos e pensamos o que é veiculado pelos canais de comunicação; pensam por nós.
As ciências sociais descobrem meios sutis de manipulação e controle; a psicologia torna-se uma técnica de ajustamento e correção de desvios; a ciência política permite calcular os riscos e os limites de todo conflito. Nunca o homem enfeixxou em suas mãos tanto poder. 
Conhecemos, sem dúvida, a vigorosa denúncia de Heidegger contra a decadência do homem moderno e sua falta de autenticidade. A decadência, que acompanha da perda de comunicação, entrega o homem ao domínio do pensamento inautêntico, ao qual falta a coragem da decisçao, coloca-o à mercê do impessoal, esvaziando-o de toda a vida interior; "pensa-se, "diz-se, "fala-se"; um pensamento sem sujeito, sem nome e sem raizes profundas introduz-se em nossa existência - impedi-nos de pensar. Mas a inautenticidade não é senão o encobrimento da angústia; é o cuidado da distração.
E para essa realidade humana que nos libera a filosofia. Cumpre pensá-la, assumí-la na sua precariedade e na sua finitude. A filosofia não é apenas um projeto de pensamento; é um projeto de vida. Sua função não se esgota na descrição da realidade tal qual esta se apresenta. Pensar a realidade signific; obrigá-la a revelar-se, descobir o que se oculta, manifestá-la em sua verdade. transformá-la.
Nunca foi tão prement a necessidade da filosofia. No seu escrito sobre a "Diferença entre o sistea de Fichte e de Shcelling"  Hegel expressou-a  nos seguines termos:
"Quando o poder de unificaçãp desaparece da vida dos homense as contradições perderam a sua relaçãp vital e sua ação recíproca, adquirimos independênia, é que surge a necessidade da filosofia". (Na edição do "Jubileu, Vol. I, p.46).

 
José Henrique Santos
Professor e Doutor em Filosofia 

Texto publicado na Revista KRITERION da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 1975.