"Dignidade humana, para quem?"

“Fundo de pobreza paga comida de detentos”. Este é o título da matéria divulgada, em 18 de setembro de 2008, no Jornal O Globo On Line. O fato encaixa como uma luva no tema a ser abordado neste ensaio - a eficiência do sistema penal brasileiro sob a ótica do princípio constitucional da dignidade humana que, entre outros, informa os dogmas constitucionais penais no direito brasileiro. Por outro lado, importante se faz a contraposição do tema com pinceladas sobre a corrente abolicionista defendida, entre outros, pelo holandês Hulsman e pelo portenho Zaffaroni.

A sociedade brasileira está em crise. Crise esta fecundada e gerada, sem controle, pela violência que assola cada esquina dos grandes centros urbanos do Brasil. Como conseqüência, vemos uma justiça sobrecarregada e uma premente necessidade da hermenêutica dos princípios penais fundamentais, mesmo que tenha uma visão minimalista ou até mesmo abolicionista, de determinar prioridades visando um pensamento, um atuar do Direito Penal verde amarelo e deixando de lado o pensar do jurista estrangeiro. Em momento algum, se quer, aqui, criticar o retro referido direito alienígena. Necessário se faz, entretanto, ter cuidado com a aplicação da teoria estrangeira que, em função de nossa realidade, não deve ser aproveitada in verbis, sob pena de travesti-la em miscigenação jurídica, distante de nosso status quo.

Na verdade, em nosso país, a Constituição vem sendo frequentemente desrespeitada e até mesmo ignorada configurando-se uma lesão gravíssima a direitos fundamentais do cidadão pátrio, direitos estes que já faziam parte do cenário constitucional mundial através da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, a qual desfraldou a bandeira dos princípios universais que, hoje, ramificaram-se em garantias constitucionais de direitos individuais, mundo afora.

Vivemos em um Estado Democrático de Direito que se diz realizar o Direito Penal através do equilíbrio entre os bens jurídicos que a norma penal tutela e os valores fundamentais do ser humano, tendo como balança a Constituição garantista, cuja espinha dorsal é sustentada pelo principio constitucional da dignidade humana.

Reconhecemos que os princípios penais constitucionais – legalidade, culpabilidade, humanidade, personalidade, individualização da pena, retroatividade de lei penal mais benigna, intervenção mínima, adequação social, insignificância – são norteadores do Estado Democrático de Direito, todos formando um elo que será reforçado pelos princípios constitucionais gerais, tais como a liberdade, igualdade, dignidade da pessoa, humanidade, justiça, proporcionalidade.Mas, os mesmos estarão sendo respeitados?

Através dos séculos, contamos com milhares e milhares de exemplos que ferem a dignidade humana, tais como penas como a da cruz, muito utilizada pelos romanos; a impalação, ainda aplicada atualmente, na Índia; assim como a utilização de anões, como bases para mesas de um restaurante, em Portugal. No contexto pátrio, ferem a dignidade humana fatos que pertencem aos dois lados da moeda: dentro do famoso caveirão, a temperatura chega a 60º C, assim como, em muitas celas de prisões superlotadas, a temperatura atinge a 50º. Por outro lado, lemos na mídia eletrônica nacional que o Governo do Estado do Rio de Janeiro utiliza a verba recolhida, através do ICMS extra das empresas, que deveria ser destinada a diminuir as desigualdades sociaisna alimentação de presos quando, na verdade, a dotação orçamentária governamental tem que prever esse custo.

O professor Rogério Greco reconhece que o princípio da dignidade humana é extremamente fluido possibilitando um infinito de interpretações que dependem do referencial, do contexto, da pessoa que está envolvida no fato que fere a dignidade humana. Nos exemplos acima citados, ela narra na aula 3 deste curso, que a sociedade portuguesa condenava a utilização dos anões como bases de mesa de um restaurante, mas que os mesmos, não viam nada demais no fato.

Na análise do desvio de verba governamental para alimentação de presos, fica mais patente, ainda, a fluidez do retro referido princípio, eis que necessário se faz perguntar: “qual dignidade, neste caso, está sendo ferida?”. A do preso que é mal alimentado e necessita de um ato irregular do governo para que se alimente ou a do cidadão honesto, que paga os seus impostos, e que vê ações sociais em seu favor não serem realizadas em detrimento de pessoas que são consideradas criminosas? Ambos os pólos da questão são habitados por seres humanos.

Há quem defenda como alternativa a aplicação do direito penal mínimo, através de um dever constitucional de descriminalizar, atingindo penas privativas de liberdade menos extensas, menos rígidas e a aplicação de penas substitutivas visando desafogar o sistema penal, assim como desfraldar a bandeira do respeito ao principio da dignidade humana.

Por outro lado, a corrente abolicionista defende o fim do sistema penitenciário, porque é ofensivo à dignidade da pessoa humana a qual possui direitos naturais, que já nasceram com ela. Nos casos citados acima, com certeza, os abolicionistas os considerariam como ofensivos à dignidade humana comparando o sistema penitenciário brasileiro aos campos de concentração. Não é necessário sermos abolicionistas, entretanto, para reconhecer que o sistema penal brasileiro é ofensivo ao retro referido princípio constitucional.

Para Zaffaroni, o abolicionismo congrega pensares filosóficos, mas com a mesma finalidade – o fim do sistema penal. Na visão marxista de Methiesen, na fenomenológica de Hulsman, na estruturalista de Foucault, na fenomenológico-historicista de Christie, constata-se a grande a riqueza do movimento. Mas, Zaffaroni denuncia o que considera genocídio praticado pelo sistema penal na América Latina, assim como a incompatibilidade do mesmo com a dogmática dos direitos humanos, os quais devem ser reconhecidos como uma ideologia para toda a humanidade.

Hulsman considera o sistema penal como um problema em si mesmo, inútil e incapaz de solucionar as questões a que está destinado, consistindo em um sistema ineficaz para dissolver as contendas nascidas na sociedade. Defende a abolição total do sistema penal, porque o mesmo gera sofrimentos desnecessários e efeitos negativos aos nele inseridos, assim como há descontrole das autoridades legalmente instituídas para o seu controle.Como solução, propõe que instâncias intermediárias resolvam as diferenças, os litígios entre as partes fora do sistema penal vigente.

Em verdade a proposta do abolicionismo penal é de vanguarda, ao pretender o fim do sistema penal. Nasce em uma conjuntura que resgata, acredita no jusnaturalismo o qual passa a entrar na seara do racionalismo, do positivismo, desconsiderando-os e deixando de lado o poder estatal e levantando a bandeira das leis naturais.

Ao recusar os ideais da intervenção penal mínima ou direito penal mínimo, o abolicionismo não aceita a legitimação, em parte, do sistema penal, constituindo-se em filosofia auto-suficiente e vista por muitos, também, como romântica, utópica ao negar a autoridade policial, ao defender a inexistência de órgãos judiciais. Entretanto, a própria teoria sugere a instituição de mecanismos, instituições intermediárias, que, na verdade, não deixam de ser órgãos judiciais.Outrossim, em momento algum, afirma que com sua adoção, com sua aprovação irá fazer desaparecer as desigualdades, as dissenções sociais, muito pelo contrário, já que os mesmos continuarão habitando o cenário judicial contemporâneo.Na verdade, o que se conclui é que a verdadeira política criminal é a social, que vai buscar a diminuição das desigualdades, das injustiças e conseqüente recrudescimento da ética, da justiça na própria justiça.

Ressalta-se a necessidade da implantação de uma política criminal social com o objetivo de não se cometer a injustiça da reverência ao abolicionismo, que não vem trazer solução à questão do sistema penal brasileiro contemporâneo, não só por sua postura extremamente radical, mas também porque nasceu em contextos que não se coadunam à realidade brasileira, já que a localização sócio-jurídico-geográfica do Brasil carimba o seu passaporte como país de periferia, latino-americano, inserido no cenário da marginalidade em relação ao mundo globalizado.

Ao mesmo tempo em que está vigente um sistema penal totalmente descompassado com o respeito à dignidade humana, através das superlotações, das péssimas condições de higiene e insalubridade das carceragens, país a fora, são patentes os excessos de prazo nos julgamentos das lides, inclusive em casos de crimes passiveis de aplicação de princípios como o da insignificância, da intervenção mínima.

Na verdade, o que se vê no contexto da aplicação dos princípios da dignidade humana, da insignificância, da intervenção mínima como possíveis “aliviadores” do câncer que corrói o sistema penal pátrio, constata-se que os mesmos não estão sendo devidamente aplicados.

Nem mesmo a filosofia extremada do abolicionismo não resolveria o problema da doença que corrói a espinha dorsal do sistema penal do Brasil, porque a mesma, apenas, soltaria as amarras de algo que transformaria o contexto penitenciário do País em um barco sem rumo. Repito que não é necessário ser abolicionista para reconhecer a falência do sistema penal brasileiro.

Concluímos, ao voltarmos à análise do fato pontual do desvio de verbas públicas para alimentar os presos, que necessário se faz a adoção eqüitativa, equilibrada de ações sociais verdadeiramente efetivas, éticas pelas diversas gamas dos poderes instituídos com um olhar voltado para a construção, aplicação e realização de uma “justiça justa”, onde seja extremamente fácil - no cantar do grupo musical Jota Quest - responder à questão proposta no ensaio em tela: “Dignidade humana, para quem?”. Com certeza, para todas as universalidades dos cidadãos brasileiros, verdadeiros focos da dignidade, neste País, sem distinção de cor, classe social, fé, opção sexual e, acima de tudo, sem distinção quanto ao fato desses cidadãos usarem ou não colarinhos brancos.

(Trabalho semestral da Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal da UNESA - setembro/2008 )