FALÊNCIA DE AFETO

Recentemente orientei minha filha mais velha sobre algo bastante inusitado para um homem como eu, que teve uma criação simples e desarmada. Disse-lhe que o homem que se casará com sua tia não será seu tio, depois de casado. Portanto, está desde já coibido que se estabeleça uma rotina de contatos físicos como abraços e beijos. Da mesma forma, as conversas reservadas, os segredinhos e outras coisas que certos marmanjos modernos adoram, quando se trata de menininhas. Quero que ela o trate com respeito e simpatia, mas com as devidas formalidades.

Confesso que a minha admoestação vai acompanhada de certo constrangimento e uma tristeza infinita, quando não de remorso. Tenho consciência do quanto sou antiquado aos olhos de muita gente, e do quanto posso estar sendo injusto ao generalizar a questão. Lembro que a minha infância não foi pautada por esses cuidados, e isso me fez um bem tamanho: O Tio José Carlos era tio, porque era casado com a Tia Elídia. Pedíamos bênção, recebíamos afagos e beijos. Igualmente, a Tia Enedina era tia por ser casada com o Tio Manuel. A mesma confiança, os mesmos afagos e a certeza do afeto verdadeiro.

Justifico o meu temor com as notícias cada vez mais gritantes de abusos contra crianças e adolescentes, por membros das parentalhas e pelos que passam a compô-las por casamento. Em geral, pessoas que gozam da confiança de todos. Nem tratamos do capítulo vizinhança, porque neste ponto, a questão foi até banalizada. Não se pode mesmo confiar plenamente num vizinho, quando se trata de filho pequeno. Mesmo sabendo que o mundo está bem sortido de pessoas confiáveis, de boa índole, não há como adivinhar quem seja o possível monstro da família ou da vizinhança, baseando-se nos discursos, expressões, religião, muito menos na idade.

Os tempos mudam, e com os tempos, mudam as formas de criar os filhos. Isso representa uma falência de afeto, confiança e outros itens que sempre foram ingredientes fundamentais de união familiar. É realmente lamentável que se precise orientar um filho sobre cuidados com a própria família, mas a realidade obriga. E de formas mais veladas, para que a vida não fique insustentável, é até necessário estendermos essas orientações no que tange os tios legítimos; em alguns casos, até os avós.

Tomara que os netos de nossos netos consigam inaugurar uma era mais humana, em que as pessoas possam confiar nos sorrisos, nos afagos e afetos... Nas gentilezas. Um mundo em que a pedofilia seja uma palavra perdida no dicionário, ou no museu das palavras extintas e insubstituíveis. Verei através de outros olhos, esse tempo em que falar de maldade semelhante será digno de um certo “pra mim, você está falando grego”.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 23/09/2009
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