SUS - O TIRO NO PÉ DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS, E OUTRAS CONSIDERAÇÕES.

O Sistema Único de Saúde - SUS, talvez seja a maior conquista cidadã dos brasileiros em termos de saúde pública, já se constituindo no maior sistema do mundo. Desde a sua formalização através da Constituição Federal de 1988, várias são as correntes de opinião contrárias e a favor. Evidente que os capitalistas da saúde privada, representados pelos planos de saúde e empresários desse ramo e outros assemelhados, não se contiveram vendo seus interesses contrariados. Ainda hoje, com mais de 20m anos de SUS, sempre que podem e que não podem, lhe expõem à execração visando a desestabilizar o governo por motivos óbvios. Mas esse sistema não poderia nascer perfeito, principalmente pela complexidade do país e as peculiaridades dos municípios, haja vista serem eles, os pilares de sustentação da efetivação desse sistema tão revolucionário. Isto porque no bojo dele, a UNIVERSALIDADE do atendimento é garantida como princípio estabelecido na constituição que trata a saúde como um DIREITO de TODOS e dever do Estado. Posteriormente, outras Leis são elaboradas no sentido de regular e regulamentar alguns de seus princípios e diretrizes, como são, no caso do SUS, as Leis Orgânicas 8.080/90 e a Lei 8.142/90.
O sentido da UNIVERSALIDADE não poderia se estabelecer, sem que algumas outras características conceituais fossem edificadas para que as ações de saúde acontecessem como um direito de cidadania. Estabelece-se, portanto, A EQUIDADE, tratando os desiguais desigualmente; a DESCENTRALIZAÇÃO, redefinindo funções e responsabilidades do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde; a INTEGRALIDADE, dizendo respeito às ações possíveis para promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos e assistência a doentes; PARTICIPAÇÃO SOCIAL, garantida mediante a atuação dos Conselhos de Saúde em todos os níveis de governo, bem como através das Conferências de Saúde realizadas periodicamente;
Concernente a DESCENTRALIZAÇÃO, paulatinamente o que chamamos de "municipalização" foi acontecendo, monitorado pelo Ministério da Saúde, focado no principio de que é no município que moram e vivem os cidadãos. Quanto mais as ações básicas de saúde estiverem próximas ao local onde moram as pessoas, melhores serão suas condições de saúde. Em tese, aos municípios compete a baixa e média complexidades, competindo a alta complexidade ao Estado.
Antes do avançado processo de municipalização em que vivemos, lembramos que, o início do processo se deu via Governo Federal quando estadualizou suas unidades e seus serviços de saúde. Por exemplo, em Recife, o então INAMPS administrava hospitais próprios como o Barão de Lucena, Getúlio Vargas e Agamenon Magalhães, além de uma rede de baixa e média complexidade em todo Estado. Fez-se o que podemos chamar de estadualização: todas as unidades federais com seus servidores foram entregues a administração da secretaria estadual de saúde que, aos poucos, foi municipalizando na mesma ordem.
Nesse processo de transferência dos serviços e dos servidores para os municípios, a gestão do estado enfrentou sérias dificuldades operacionais, principalmente por parte dos seus servidores. Havia um sentimento de indignação por parte deles, pois "como era que servidores do estado de um dia pra outro, estavam subordinados a outro poder (inferior, na visão da maioria)? Retrucavam”. Os municípios, por sua vez, não tiveram a habilidade suficiente para acolher aqueles "novos" servidores. Estabeleceu-se uma "crise" entre a secretaria de saúde do estado que ACEITAVA de volta os servidores rebeldes e o município que, muitas vezes, ficava sem aqueles profissionais de saúde que retornaram, por conta própria, ao seu órgão de origem. Evidente que um sistema de saúde dessa magnitude não poderia se estabelecer sem conflitos, pois como proposta revolucionária, mexeu com interesses particulares de grande parte dos servidores e, de alguma forma, desestabeleceu antigas relações de clientela estabelecidas na grande maioria da unidades municipalizadas. Proporcionalmente, esse conflito se deu também com os servidores federais que, igualmente eivados de vaidade, não se submeteram, facilmente, ao comando de outra instância de governo.
Aos poucos tudo foi se acomodando, principalmente com a consolidação (amadurecimento) do controle social, notadamente dos conselhos municipais e estaduais de saúde que, aos poucos, foram interferindo positivamente nos nós críticos do sistema. A comissão intergestora BIPARTITE, teve como continua até agora, fundamental importância no estabelecimento de condutas e ações cujos aparatos legais ainda não estejam em consonância com o SUS.
O SUS de hoje é bem melhor do que quando começou. Sua lógica enquanto política pública includente e cidadã já são assimiladas por grande parte da população. Isto se observa levando em conta a participação da comunidade nos conselhos gestores e outras instâncias do controle social, não obstante o reconhecimento de que muito tem que ser aprimorado neste sentido. Concernente aos servidores, temos o entendimento de que o SUS ainda não foi internalizado como deve, partindo do princípio de que são eles os principais executores do processo. As gestões estaduais e municipais ainda se comunicam precariamente com os seus servidores neste sentido. Os eventos de capacitação, geralmente, acontecem nos níveis de gestão mais próxima da hierarquia superior, ficando a ponta do sistema desassistida das informações necessárias ao estabelecimento de conceitos e visão crítica mais sólida sobre o SUS. Dificilmente os conceitos de universalização, equidade, referência, controle social, regionalização, etc., estão no domínio do maior número de trabalhadores da ponta do sistema. Mesmo em outros níveis gerenciais se identifica isto, inclusive em boa parte dos gestores de unidades de saúde, principalmente em municípios menores e de regiões menos desenvolvidas do país.
Atualmente, várias correntes têm se insurgido buscando mesclar o SUS com outras propostas filosóficas de organização. Partem, geralmente, do pressuposto de que as gestões até hoje praticadas não alcançaram o objetivo maior, principalmente nas questões de acesso e resolutividade. As conhecidas OS - Organizações Sociais estão aí buscando adeptos e até com garantias legais emanadas dos Poderes Públicos como no caso de Pernambuco. Entendemos ser uma temeridade essa interferência na natureza eminentemente pública do nosso Sistema Único de Saúde. Evidente que problemas de gestão há, mas melhor do que implementar um modelo de tendência privatista no serviço público, é investir em diversas fontes de poder e promover uma condução gerencial com menos ingerência política e com mais verbas destinadas a saúde nos três níveis de governo. Junte-se a isto uma nova forma de gerir o controle social, chamando-os ainda mais para dentro da gestão e promovendo capacitações no sentido de que seus membros se tornem mais conhecedores do sistema em seus diversos níveis. Dito diferente, o problema da gestão do SUS se resolve diminuindo as interferências políticas, criando novas faculdades de medicina, consórcios metropolitanos de saúde, atualizando os estatutos dos servidores públicos, aumentando seu financiamento, carreando mais vontade e decisão políticas. Criar novos modelos como as OS poderão tornar a "emenda pior do que o soneto", pois milagres não existem. De uma coisa podemos ter certeza: se essas OS fossem pelos menos razoáveis, todos os órgãos representativos da saúde não estariam fazendo moção contrária, a saber: Sindicato dos Médicos, Conselhos de Medicina, CONASS, CONASSEMS, etc..
Entendendo que o SUS seja maior do que esses "modismos" de oportunidade retornamos ao que gostaríamos de concluir no que chamamos de "O TIRO NO PÉ". Resumimos isto na grande dificuldade por que passam hoje os municípios que receberam unidades e servidores dos estados e estes, do governo federal. Assumiram-se as responsabilidades repassadas no sentido de prestar atendimento em saúde para a população, mas não se previu a substituição dos servidores diante de atos de aposentação, invalidez, pedidos de demissão e até morte de servidores. Atualmente, grande parte desses servidores já não está mais na ativa. A quem compete a substituição deles? Ainda não se teve a resposta concreta a esta indagação, mas enquanto ela não vem, as instâncias que assumiram os serviços é que tem que bancar com seus próprios recursos, enquanto que os repassadores deixaram de ter despesas e continuam ganhando os repasses pertinentes da esfera de governo superior. Os municípios, por sua vez, estão pagando a conta contratando novos servidores mesmo sem dispor de recursos para isto. O ministério da saúde, por seu lado, reconhece esse problema, mas ainda não tomou nenhuma iniciativa no sentido de repassar aos estados e municípios (fundo a fundo?) recursos relativos aos servidores afastados por diversos motivos, conforme delineamos acima.
Ratifica-se, deste modo, o que vem se consolidando na prática: o SUS como um sistema em construção devido a sua complexidade e grandeza. Contudo, há que se reconhecer que o SUS de hoje é muito melhor do que o de ontem e o de amanhã, certamente, será melhor do que o de hoje. O que não se pode querer é um sistema dessa magnitude já pronto. Sendo uma construção cidadã, teve que enfrentar dificuldades que vão desde os grandes "lobs" da saúde privada, até a mentalidade até então estabelecida da saúde curativa. O SUS, portanto, é o grande fomento da reforma sanitária brasileira que vê a saúde como "direito de todos e dever do Estado". Saúde como direito, implicando em saúde enquanto qualidade de vida. Pra se alcançar qualidade de vida, antigos conceitos culturais tiveram que ser revistos, proporcionando aos cidadãos a capacidade de compreenderem o papel do Estado. Até onde podemos compreender, as Organizações Sociais representam a negação disto, pois colocam os bens públicos sob gerenciamento privado, disfarçados de "sem fins lucrativos"... Insurgem-se, as OS, contra o SUS - esse grande patrimônio dos brasileiros, administrado pelo setor público e com ampla presença do controle social. Elas justificam isto com base na suposta ineficiência administrativa do serviço público, porque tomar as medidas necessárias para consolidar um SUS efetivo, tem um custo político que poucos querem pagar. A maioria dos que são a favor das OS tem "rabo preso" no serviço público e são, não raro, empresários do setor saúde privado. Exceções existem e isto não se discute, mas o que temos que discutir é que não se justifica mudar as "regras do jogo" com o jogo em andamento, principalmente porque os argumentos são frágeis e denotam interesses extremamente privativistas dentro do serviço público. Ninguém ignora que ladrões do serviço público dificilmente vão pra cadeia; maus servidores do serviço público dificilmente são demitidos, mesmo em estágio probatório; que há pessoas incompetentes no serviço público ocupando cargos comissionados porque fazem parte da cota de políticos, etc.. Criar leis duras contra tudo isto, inclusive modernizando os Estatutos de Servidores, dá bem menos trabalho do que criar uma nova modalidade de gestão, principalmente contrariando um sistema includente como o SUS, revolucionário como o SUS, Universal como o SUS... Esse mesmo SUS que a UNESCO declara Patrimônio da Humanidade.

CARLOS SENA.