O Resgate de Afrodite

Nas épocas mais remotas, encontramos vestígios do poder feminino manifestado plenamente nas sociedades matriarcais(1). Cabia à mulher gerar, alimentar, oferecer abrigo e tomar as decisões mais importantes no seu grupo social. As mulheres da era matriarcal nos dão a impressão de terem sido grandes rainhas, dignas do respeito, admiração e amor masculino.

Historiadores da religião nos trazem à tona um panorama completamente distinto do que conhecemos hoje. Houve uma época em que a Grande Mãe era adorada e deusificada sendo reconhecida como a própria fonte da vida.

Na Mesopotâmia era conhecida como Inana e na Assíria como Ishtar, ambas representavam a força da vida sendo responsáveis pelas mudanças das estações e detentoras do poder sobre o nascimento, a morte e a ressurreição.

A religião cristã transformou a antiga deusa em pérfida, pecadora e diabólica. Desde o primeiro capítulo da Genesis bíblica, a mulher aparece como a ambiciosa criatura que tenta Adão e rebela-se contra Deus por intermédio de uma serpente astuta. Todo o episódio é uma alegoria para subestimar a mulher e colocá-la sob a influência do homem.

A mulher, definida como pecadora, não é digna do amor masculino, bem como do seu respeito. Do ponto de vista religioso, que acabou por fundar a sociedade atual, a mulher passa a ser objeto do homem. Por ser inferior, passa a não mais merecer o afeto do pai ou do marido. Portanto, a violência, como forma de punição, é um ato admitido tacitamente dentro de uma sociedade patriarcal arbitrária.

As deusas da Idade Média, ou seja, as mulheres que viviam seguindo as regras da natureza, também foram denominadas de bruxas e queimadas em infames fogueiras. O silêncio de uma comunidade patriarcal diante de tamanha brutalidade ainda ecoa em nossos tribunais.

Após o advento do Cristianismo no séc. I d.C houve um banimento geral da mulher da sociedade. Esta nova religião causou um divórcio na civilização separando o Deus-pai da Deusa-mãe, e introduzindo uma série de novos dogmas que inferiorizaram a mulher diante dos olhos de um Deus-homem, inflexível e rigoroso em suas punições.

Sabemos que antes do cristianismo, também havia uma tendência de maximizar o poder masculino, porém, nenhuma religião foi tão cruel com as mulheres como a cristã que as dividiu em dois grupos distintos de Marias: a santa e a pecadora.

Pois se há necessidade de optar por um dos lados destes grupos, então me posiciono em cima do muro desavergonhadamente, uma vez que habita em mim em plena harmonia, tanto uma como a outra.

A antiga sociedade grega deu à luz ao maior símbolo feminino que conhecemos: a deusa Afrodite. Afrodite, por sua natureza livre e sensual, é vítima das maiores injustiças no mundo moderno. Como pode uma mulher que convive bem com sua sexualidade, que aprecia perfumes e flores, que não se enquadra aos modelos de comportamento feminino esperados pelo homem, ser respeitada numa sociedade endurecida pela moral religiosa masculina?

Afrodite só entende de arte, poesia, beleza e amor. Afrodite não vê graça em ternos escuros, em regras ortodoxas ou em discursos políticos. Afrodite não levanta bandeiras ecológicas, não se interessa por política, não brinca com armas de fogo.

E por que então, estou investindo meu precioso tempo em seu resgate? A resposta é simples: porque o mundo precisa de beleza para nos ajudar a suportar o caos de nossas próprias vidas. Aquele caos difuso que nós mesmos causamos. Aquele caos masculino que nos enrijeceu. Aquele caos faminto de nossa própria criação.

A mulher que senta-se à mesa com Afrodite convida as cores do mundo a habitar sua casa. Esta mulher-afrodite contribui para o desenvolvimento da anima mundi, e apazigua os ânimos, e desperta os sonhos.

Pois parte do trabalho do poeta é flertar com Afrodite, para que ela o inspire e o devore.

[1] Por matriarcal nos referimos uma sociedade que reverenciava a Deusa-mãe.