O SENHOR ALTER EGO

Chega de Pelotas, minha terra, o salutar pedido de crítica provindo de uma pessoa que ocupa lugar de destaque no meu espírito. Inteligente, lúcida e altamente preparada. Pede a análise do texto abaixo. Ao trabalho, de imediato!

“POESIA OU FLUXO DE CONSCIÊNCIA?

Lígia Antunes Leivas (Lilu)

Qualquer ponto da estrada

qualquer paradouro sem indicação

ao despertar de um sono pouco, breve

com sonho de gaivotas voando

como se tudo fosse paz...

Sorriso amarelo... apenas a boca

com lábios estirados

(melhor mesmo era não ter

nem que olhar para o lado)

Aquele pregador a noite toda nos meus ouvidos

a insistir que deus existe...

(sei lá se existe ou não

os homens também criam cada coisa...)

Irritante essa sempre concordância com as regras

com o previamente estabelecido

para o mundo ser melhor

(e se não fosse assim,

será que não seria mesmo muito melhor?)

Transgredir a hipocrisia,

dar autenticidade a tudo...

– ... mas fui eu mesma que disse isso?

(–... por que será que hoje sou verdade?)

Algumas ruas acima o silêncio daquela cidade

(nem sei qual é...

faz horas que esse 'bus' dá voltas e voltas...

– que lugar do mundo é este?)

passa no meio dos tiros.

Todo lugar é igual.

Cidade esvaziada nesta hora da madrugada

e a lua é cheia... linda!

No meu canto converso com tantos!

(todos vão comigo no meu pensamento...)

E o pastor quer as minhas respostas

– por que duvido da existência de deus?

Ora, nem eu sei... isso é coisa sem resposta.

Segue-se... Seguimos todos...

o ronco do motor a força das marchas

os morros com luzes ao longe

mais uma parada ao longo do caminho.

– E por que estou aqui?

A chuva sempre é fria em qualquer estação.

A estrada começa a ficar cidade... apitos

barulhenta, desperta-me para o real.

Já nem sei quem é mesmo essa que vem dentro de mim...

– a passagem.

O rumo virá ao meu encontro...

Publicado no Recanto das Letras em 21/11/2010.

Código do texto: T2627722”,

In http://www.recantodasletras.com.br/poesias/2627722

Eis um texto de difícil apreciação, observe-se, de pronto, a sua extensão: cinquenta e seis linhas gráficas de apresentação formal, incluindo titulação e autoria. É literalmente perceptível que o mesmo provém de um “fluxo de consciência”, tanto que este é um dos títulos alternativos oferecidos como proposta de instigação ao pensar: a poeta/autora mergulhada no que o cadinho fervente da criação propõe à parição na plenitude do universo pessoal de inquietudes. Naturalmente que fluiu a intuitivo, através do bafejo da inspiração ou espontaneidade.

Curioso é que fruto de perquirição intelectiva segundo os signos forjados num autoquestionamento – como se houvesse dito algo ao ouvido – que lhe sugerisse novos padrões e enfoques sobre vida e verdade, como apontava Göethe. Ótimo questionamento para a encenação teatral, como aponta Shakespeare: "To be or not to be"... O que causa estranheza é a apresentação em versos sugerindo um exemplar em poesia, e não em prosa.

Sempre que me topo com versos prosaicos fico pensando: o autor poderia ter escrito linha a linha, margem a margem, parágrafo a parágrafo, porque o fundo (o conteúdo) da peça aponta a classificação do gênero literário.

É curioso que o ritmo da lavratura é cursivo, com andamento rítmico e “tônus poético” que não negam o poético, seguindo até a antepenúltima estrofe de verso único, interrogativa, lembrando Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa. Depois, é hiato confessional, sobrevindo o questionamento de rumo para a "viagem"... Novo complemento interjeicional sublimado pelas reticências me parece que – como em vários textos meus e nos da autora – a “Barca de Caronte” num redivivo respirar mitológico, traveste-se, nesta ebulição, no proletário ou popular "coletivo" dos tempos atuais, que atende às necessidades de transporte, aos deslocamentos do povo, assegurando o ir e vir.

Ao menos, quando chegar a hora, seguiremos com mais rapidez, tal a destreza da imediatidade virtual, dos sonhos e do encantado mundo das imagens, no plasticismo que a Palavra constrói.

Compreensível que na titulação alternativa esteja a Poesia, porque, mesmo no suprarreal, é ela que reconstrói a vida, mormente quando o hostil da realidade nos sugere perdas ou até o Armagedon. E reporta-se, após o escorço no limbo da discussão filosófico-poética: "Já nem sei quem é mesmo essa que vem dentro de mim...”.

Sede muito bem-vindo ao íntimo do universo autoral, senhor Alter Ego! Vossa densa e misteriosa palavra excluirá o Ego e dará vida ao emocional que se debate, dizendo a que viestes, propondo o balbuciar do poema numa largueza de entendimento que o egocentrismo do Ego não permitiria. Dizei a que veio, Alter Ego... E que o Outro faça parte da festa da palavra, pois “O rumo virá ao meu encontro...”.

– Do livro OFICINA DO VERSO, vol. 02; 2009/17.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2631928