Cartas sobre a guerra a Mariana

O ensaio abaixo reune os comentários que fiz à crônica Os anjos da morte. de autoria da cronista Mariana Ianelli, publicada no site vidabreve.com em

Nenhuma guerra que envolva Forças Armadas dos países envolvidos é uma Guerra Total. A guerra acaba quando o objetivo político é alcançado. Carl Von Clausewitz em seu livro DA GUERRA foi quem primeiro apontou esse ponto limítrofe da ação militar. Apenas dois países foram totalmente invadidos para que este desiderato fosse alcançado: a Alemanha na Segunda Grande Guerra e o Iraque, hoje, ainda ocupado por tropas americanas.
Na Alemanha sobraram tão poucos cenários de como aquele país era antes do conflito que Ingmar Bergman filmou O OVO DA SERPENTE em uns três quarteirões.
O Iraque teve tesouros artísticos destruídos e saqueados. Roma ao menos preservava a cultura do país invadido e se interessava por ela ao incorporá-la. A Inglaterra e os USA destroem a cultura do país vencido. Os USA destroem a cultura de países mais pobres, mesmo quando não há guerra convencional.
O ponto limítrofe apontado por Clausewitz talvez tenha sido desrespeitado aqui na América Latina na Guerra do Paraguai, mas então as Escolas Militares ainda não conheciam Clausewitz. Fazer uma guerra genocida envolve gastos que nem o país vencedor deseja. Xadrez, truco e outras guerras, de José Roberto Torero, foi o único romance que li sobre a Guerra do Paraguai.
O tempo em que o horror fazia parte da fabulação mais do que a realidade não é tão distante. Hoje quem teria medo de um filme estrelado por Boris Karloff?
Na mira da morte ( Targets) foi o último filme estrelado por Boris Karloff. Dirigido por Peter Bogdanovich, lançado em 1968, retrata o momento da transição do horror para o terror.
Um jovem diretor tenta convencer o veteraníssimo grande astro Byron Orlok a filmar seu mais novo roteiro. Mas o velho ator só pensa em se aposentar. Paralelamente ao desenrolar desses fatos, um maníaco neurótico do Vietnã, inicia uma série de assassinatos na cidade, atirando a esmo com rifles de longo alcance, em carros e pedestres que tem o azar de cruzarem o seu caminho. No final, o encontro de Orlok e o atirador assassino.
A partir de Targets todos os filmes passaram a ser mais de terror que de horror, e o horror de antes, hoje, não mete medo em crianças do curso primário.
Mas o que escrevo cabe apenas em um cantil. É uma boa caminhada ter de aguardar de sábado a sábado para vir aqui no saite. Às vezes temo ficar desidratado. Então durante os demais dias só bebo uns goles de poetas menores um pouco. Mas quando fico com muita sede vou ler poemas de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), também estupenda poetisa lusófona! Sua poética é puro suco de aleivosia!

No início das caminhadas devemos beber pouca água, ao menos a do cantil que é racionada. Há sensores no sistema nervoso que ao sentirem a restrição hídrica estimularão os rins, por meio do hormônio antidiurético (ADH, sigla em inglês), a reterem água, que somada à produção de água endógena, manterão o organismo hidratado.

Maratonistas sabem disso.

Esta dica serve também para moças e senhoras que precisam fazer viagens interestaduais de ônibus a fim de aguentarem ir ao toalete apenas na parada modelo. Mas não é recomendada para viagens longas, porque a hipohidratação predispõe a trombose venosa. Quem tem varizes nem pensar! Quem não tem beba água nas viagens de avião, que aquelas cadeiras apertadas diminuem o retorno venoso e predispõem também à trombose.

Fuzileiros navais também sabem disso, e só bebem a água do cantil depois de tomarem a cabeça de praia. Beber antes de conquistada a praia pode causar descarga visceral não relacionada com o medo. No bom combate o alívio sempre precisa vir ao final.

Mesmo no metabolismo basal é importante a atuação do hormônio antidiurético, porque na sua ausência há o advento do diabetes insipidus.

Vi paciente que não crescia e a quantidade de urina por dia (diurese das 24 horas) pesava o mesmo peso da menina. O rim é muito mais que mero produtor de urina. Mas desconheço metáfora alusiva ao rim na literatura, nela o rim entrou por causa dos transplantes, ao menos no conto Os anjos das marquises de Rubem Fonseca.

Há tratamento de reposição hormonal, no caso do diabetes insípidus a vasopressina é de administração sublingual.

Aqui não há nenhum escritor insípido. Também não há nenhum escritor melífluo, porque deixam esse trabalho que é das abelhas para as abelhas. Espero coraçãomente que não haja nenhum diabético.

Na loja renal há coisas importantes, as glândulas suprarrenais, por exemplo, são essenciais à manutenção da pressão arterial. Quando há falência delas em geral o indivíduo morre.

Pode ser mantido vivo com uso de aminas vasoativas como a dopamina e a dobutamina.

Mas às vezes o uso desses medicamentos serve apenas para manter a vida e não mais para curar o doente.

Então é justo conversar com o médico assistente sobre a possibilidade da ortonomásia, que é a suspensão de aplicação de medicamentos que apenas prolongarão o sofrimento da família, sem devolver o sujeito ao seu seio.

Manter a vida nem sempre é uma guerra que vale a pena. Minha família optou pela ortonomásia, quando meu pai estava sendo mantido vivo por aminas vasoativas.
A ortonomásia é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina.

Desculpe pela digressão, querida cronista. Mas sobre violência urbana e no campo você tinha dito tudo.

Lembro uma crônica de Nelson Rodrigues que tinha uma fala de um personagem “Quem morre descansa.” Mas prefiro o cansaço que me leva ao sono ao fim de cada dia vivido.

É importante que haja vozes pacifistas. Mais importante ainda que haja gente que reaja contra a banalidade do mal, como fez Hannah Arendt em suas críticas ao complexo industrial militar e a capacidade da eliminação em massa de civis, inaugurado na Primeira Guerra Mundial. Os valores ontológicos da poesia e da literatura cumprem importante missão na humanidade ao abrir os olhos de quem cansado os tenha fechado. A banalização do mal dessensibiliza o ser humano em relação ao valor da vida.
Mas todo país precisa ter seu Ministério da Defesa.
No concerto das nações
há sempre D dos dados;
mas sempre terá mais razões
país com melhores soldados.

A paz se dá mais pela deterrência, isto é, pela capacidade de retaliação e de dissuasão do que pela diplomacia, importante coadjuvante no processo de estabilidade das relações entre países.
Amoz Oz em seu livro Fanatismo põe em relevo a ambivalência como elemento da paz, porque somente a ambivalência permite que uma pessoa se coloque com sinceridade no lugar da outra. Por isso tem amigos árabes e até alguns amigos palestinos. Mas diz que só não lutaria por seu país porque já não tem mais idade para fazê-lo em caso de uma guerra. Não é um intelectual hipócrita.
Tarik Ali, nascido no Paquistão, que significa terra dos puros, por sua vez no livro Confronto de fundamentalismos faz sérias críticas aos fanatismos islâmico e estadunidense da era Bushinho, este último país erguido sobre a influência dos quackers, protestantes puritanos, que são capazes de eliminar o diferente, subjugar o povo inferior como fez com a dizimação dos índios.
Mas não foi Deus quem destruiu a Torre de Babel representativa da ambição humana de falar uma língua só? Essa pergunta quem fez foi José Saramago, em seu livro Caim.
A vida de Flora Tristan, peruana, mãe de Paul Gauguin , é contada por Mario Vargas Llosa no livro O paraíso na outra esquina, onde um capítulo é sobre a vida de Flora e o seguinte é sobre a vida de Gauguin. Llosa passeia sobre a ingenuidade de Flora Tristan, que acreditava numa sociedade até mesmo sem forças armadas, com enorme empatia e compaixão. No capítulo seguinte faz o mesmo com o que é ser um artista gauche na vida ao romancear a biografia de Gauguin.
Quanto à violência no Brasil como questão interna cabe mesmo às pessoas de paz e boa vontade, aos professores, aos literatos, aos médicos e demais arquitetos e engenheiros da vida, não falo aqui do intelectual orgânico idealizado por Antônio Gramsci, lutar para que a qualidade das pessoas melhore aqui.
Numa das suas declarações Caetano Veloso chegou a dizer que “Parece que somos um país habitado por gente ruim”.
Não esqueçamos que o germe da corrupção, parteira da violência, nasceu com O homem cordial das teses de Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil.
Neste sentido será que a opção dos brasileiros pelo não desarmamento quando houve plebiscito sobre essa questão foi o tiro de misericórdia no tal homem cordial?
Leon Trotsky, por não achar o pensamento livre confiável, em seu livro Literatura e revolução, chamou os intelectuais de companheiros de viagem porque estes pensam para além de qualquer dogmatismo. Importa falar isso porque toquei no assunto no último comentário do intelectual orgânico, aquele “criado” por Antônio Gramsci. Ocorre que nem Saramago, comunista confesso, conseguiu ser confiável para todo e qualquer regime comunista ditatorial, porque diante de execuções em Cuba protestou contra o uso da pena capital por razões políticas.
O único intelectual orgânico absolutamente fiel aos dogmas marxistas foi o Professor Doutor Abimael Guzmán, peruano, líder do Sendero Luminoso, capaz de criticar Nikita Kruschev, quando este condenou os crimes de Joseph Stalin, ou Estaline, como se escreve em Portugal.
O Sendero Luminoso foi o terrorismo mais letal de todo o continente americano, com cerca de setenta mil vítimas.
Então, creio que Mario Vargas Llosa pode sim escrever textos políticos sobre a liberdade sem ser considerado homem de direita ou retrógado.
Obrigado pela atenção Mariana, creio que tenha falado o que penso sobre a paz. Resta-me neste domingo, ajoelhar genuflexo como um anacoreta e agradecer que exista alguém que escreva pela paz com a sinceridade e a pureza com que você faz sempre.
Estive na África do Sul em 2002 para proferir uma palestra em um Congresso de Medicina Militar sobre o tema Brazilian Navy’s Health Care Programmes. Lá é ainda mais difícil viver. Quando começou este negócio de muita bala perdida no Brasil algum articulista escreveu sobre o processo de africanização do país. Na África do Sul, ao menos até 2002, os shoppings fechavam às 19.30 hs durante a semana e às 21.30 hs nos fins de semana. Havia recomendações expressas para que não saíssemos do hall do hotel. No hotel que não abríssemos as janelas, não atendêssemos porta sem termos pedido serviços. Não pegássemos taxis que não fossem de cadastrados nos shoppings para terem acesso ao ponto.
Toda noite lá é tocado o toque de recolher.
A entrada do Shopping Monte Cassino, um shopping bem grande, era do tamanho da porta do meu apartamento. Havia um aviso na entrada Faça esse passeio por seu próprio risco. Mesmo à luz do dia éramos revistados para entrar no recinto.
Qualquer seara que andássemos sozinhos no corredor turístico onde transitamos havia esse aviso: Faça esse passeio por seu próprio risco.
Quando fomos para o complexo hoteleiro de Sun City, situado a menos de duas horas de Johannesburgo, localizado na província de North West, onde belas plantações de girassóis enfeitam os campos, tivemos sossego.
O complexo conta com cassino, piscina com ondas, campo de golfe e o único hotel 6 estrelas do planeta, o The Palace of The Lost City.
Óbvio que não ficamos lá. Mas fui ao Palácio da Cidade Perdida para um café da manhã. O real valia nove rands, moeda africana.
Quando voávamos em direção ao Aeroporto de Johannesburgo, vi as favelas africanas e eram todas na fase barracão de zinco.
O que nos surprendeu no Brasil desde o início da redemocratização pós-ciclo dos governos militares é que não havia liberdade de fato. Sua crônica poderia ter sido escrita por um subversivo brasileiro dos anos setenta. Alguém perseguido Em câmera lenta, aliás este é o título de um romance de Renato Tapajós, o melhor que retrata a violência política da ditadura militar.
Na França entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais houve intensa campanha em prol do aumento da natalidade, os franceses tinham lá suas razões. Sabiam que iam em breve precisar de soldados.
Bertrande Russel, em seu livro Ensaios céticos, escreveu que todos que eram contra o controle da natalidade eram a favor da guerra. Concordo com ele, nós seres humanos não estamos excluídos do determinismo da Lei de Malthus de que a violência aumenta na medida em que mais animais, mesmo que racionais, precisam disputar os recursos para a sobrevivência.
Hilda Hilst em seu livro Exercícios, em um poema a Aldous Huxley, prega para que as mulheres não tenham filhos, que parem!
Acho que minha vida seria muito triste se eu nunca tivesse sido pai. Sem eu nunca ter conhecido mãe que não fosse a minha própria.
Mas sempre que leio você fico para lá de Marrakesh.
Enquanto isso em Teerã, o Comandante da Marinha Iraniana planeja a colocação de minas no Estreito de Ormuz que em caso de guerra impedirá a exportação de petróleo via Golfo Pérsico. Obama constrangido pelo Prêmio Nobel da Paz não permite que Israel bombardeie as áreas montanhosas das experiências nucleares do Irã porque teria que ceder o espaço aéreo do Iraque. E é assim que a próxima guerra acontecerá de repente quando um republicano assumir a Presidência dos EUA, de preferência com a economia em ascensão e com o fim de outras frentes de batalha causadoras de overstretching.
A ideologia alemã, de autoria do jovem Karl Marx, ainda hoje é um livro capaz de reduzir a mundividência a um entendimento meramente geopolítico. Desculpe mais este adendo à crônica Os anjos da morte. Esqueci-me de dizer também que foi Klaus Barbie, o nazista conhecido como o açougueiro de Lion, quem assessorou o governo boliviano na captura e morte do guerrilheiro Che Guevara.
Os anjos da morte nascem a cada dia e os da vida pertencem a eternidade.
Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 11/02/2011
Reeditado em 15/08/2011
Código do texto: T2785039
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.