O AMOR TSUNAMI EM ROSSYR BERNY

Eis mais do que uma obra de Rossyr Berny, poeta, romancista, novelista, historiógrafo e editor.

Seguramente um vencedor. Um exemplo de vida, de pertinácia, de quem nunca se deixou levar pela vida em “brancas nuvens”. Trabalho, dedicação, entrega ao coletivo, ao solidarismo. A começar por uma tropilha de irmãos. Doze, para ser mais preciso. Dezoito, se tivessem sobrevividos todos às precariedades familiares. Filhos de um carroceiro, “seu” Ervandil, e de uma lavadeira, Dona Maria, dedicada mãe que já aparecera no derramado confessionário poético em “Os doze apóstolos de Maria”. Mas os encargos da família pobre e digna estão vivos, a balizar no poeta que é preciso perseverar no trabalho, obedecendo a visão solidarista que haurira na infância:

“Do último inverno que lembro

buscando pasto no campo inteiro-vidro

eu era feliz repontando vacas e montarias

Trazia o cavalo à carroça do pai

que trariam ao meio-dia algum alimento

à mesa da quase vintena de filhos, mãe, avós

Do último inverno (que lembro ainda menino)

o rigor das precariedades

nos punha solidários no mesmo ninho quente”

(“Não verão maior”, pág. 100)

O poeta interiorano - lambuzado de infâncias, de verões e invernos na sua aldeia de São Gabriel, de dificuldades para sobreviver, engraxate, viandante das ruas, habitante da periferia arrabalesca – guarda mimosamente os jogos amorosos, o ludismo da infância, a tradução afetiva em poesia, a busca da felicidade compensatória das faltas materiais. Sempre a inconformidade para com o “mundo enigma”, na visão do elaborado poeta da forma e do inconformismo – Murilo Mendes – que sofrera, há mais de quarenta anos a “brasilite”, a conseqüência patogênica de pensar o Brasil com lucidez, entrega e amor declarados:

“Sofro de brasilite,

Mísero tétamon

Para suportar nos ombros o BR:

Esmaga-me concreto

Ainda mesmo à distância

Ninguém situa o BR

Inaferrável

...

BR:

Igualmente candidato

Ao domínio do universo / Maiakovski

E aos trabalhos forçados

Nos teus porões aportam diariamente

Enormes caixas de problemas – coisas.

...

A cada um sua xícara de café

A cada um aloprado

Sua mínima ração de morte cotidiana”

“Grafito para Mário de Andrade’, in Convergência, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970, pág. 12:3.

A mesma preocupação do poeta Rossyr, que vê o mundo pelo avesso, pelos fundilhos, sob a ótica do caos, existe no poeta russo citado pelo mesmo Murilo Mendes, na intertextualidade “Grafito para Vladimir Maiakovski”

“O planeta não está maduro

para a alegria”

(p. citado, idem, ibidem, pág.52).

O sobrevivente inconformado retoma de suas memórias andarilhas o lúdico ansioso:

Cadê o chão que estava aqui?

Bato braços e pernas no vazio

bato dentes de frio

Bato cabeça em busca de ar e de luz

...

Cadê o beijo que estava aqui na boca?

Bato asas imaginárias

no vácuo onde a vida deveria brilhar

(“O céu que estava aqui”, pág.80)

Sempre a afirmativa lírica, desejosa, compensatória dos desamores. Aliás, Rossyr Berny é o poeta dos desamores, do sofrer com o amor impossível, a ponto de generalizar ao universo a sua visão pessoal. Veja-se o seu livro “Desuniverso”, de 1978, o segundo de uma trajetória iniciada com “O Homem-Autômato” de 1976.

Essa diferença ótica, de visão do mundo dissoluto, do amargor intrínseco à criatura humana, faz de Rossyr Berny um criador poético gauche. Aplica-se finalisticamente a Rossyr o que Carlos Drummond de Andrade em sua poesia – coloquialmente – criava para si e que se universaliza para o andar no mundo daqueles que, por correrem à margem dos parâmetros de normalidade, baliza a ótica surreal dos condenados a pensar: “Vai Carlos, vai ser gauche na vida.”

O “tsunami” começou cedo em Adão Rossyr Berny de Oliveira, menino rico de vivências suburbanas em São Gabriel, caminhos da fronteira oeste Do RS, onde as diferenças sociais são ciclópicas e só tem vez o latifúndio e seus donos.

É claro que o vocábulo nem existia nos idos da década de sessenta, quando o espiritual entronizava o poeta após as primeiras letras e lhe coçava o bolso à busca de alguns pilas pra comprar guloseimas.

Tsunami, o fenômeno marítimo que dizimou trezentas mil pessoas na Ásia, ocorrido no final do ano passado, e que confrangeu o mundo, entranhou-se também, nas “juntas” de pés e mãos do menino carente de São Gabriel. Os medos, as necessidades vitais, a urgência da paz para um mundo permanentemente em guerra (por valores comezinhos espiritualmente), a ação destruidora do fenômeno marinho fez com que o poeta desse ao livro o título “ Amor Tsunami”. Dicionariza o poeta o barbarismo, adotando-o em sua dialetal alienígena – a grafia nas letras brasileiras. E o curioso é que ele acopla a barbárie fenomenológica ao AMAR.

Conota e denota o quanto a perda da amada corrompe, macula, afunda e destrói os seus valores de posse na concepção mais fática e machista.

“Cadê o amor que estava aqui no peito?

Agora cremado não é nem mais cadáver

para exumação e autopsia

Teria mesmo existido

ou só foste falso braseiro o tempo todo?”

(“O céu que estava aqui’, pág. 80)

E prossegue a louvação amorosa em ótica diferenciada, própria, tentativa de busca de permanente originalidade no fazer poético:

“Por mecanismos de legítima defesa

a saudade se autodestrói

quando beira o precipício

(Queima o mundo)

II

Do salto nascem pára-quedas de vôos

para os tempos de limbos

Mas vésperas de novos céus e ninhos

Tempos de outro nome de mulher”

(Automedicação e efeitos colaterais, pág.114)

E o autor, partindo do confessionário íntimo (que é pedra-de-toque de todo o discurso amoroso) distende, espraia o seu amor ao coletivo. Justifica-se no solidarismo. A coletivização cria momentos interessantes num livro em que faz o laudatório para o amor impossibilitado por questões extrínsecas ao afetivo:

“Porque tanto te chamo

todo meu vocabulário é só teu nome

...

Toda a voz que tenho

só serve para clamar teu nome

Grito que teu desamor consome

...

Rouca

a voz louca grita aos sussurros

ao alcance inútil do teu coração de abismo”

(Voz louca, pág.31)

E o mundo toma corpo, amplia-se na inconformidade, no gauche pesaroso, infantil, resquícios dos embates, faltas, carências de antanho na memória rediviva:

“Passeio a vida

passo a passo comigo em falso

...

Saíste de mim

apagando a última luz

E eu aqui, filho da noite

tomado de escuro e de medo”

(Cadafalsos, pág. 24)

Mas a voz interior recrudesce na denúncia e na fortaleza da palavra, naquilo que o poeta crê que é preciso mudar para alimentar a esperança social:

“Ferreira Gullar

deixou enferrujar no coldre

sua palavra vigorosa

Seu poema sujo

queria lavar o mundo

e não banhou a si

...

O país tornou-se a pátria dos sonhos

sem fome desemprego dívida externa

ou a poesia envelheceu verbo e lâmina?”

(“A poesia envelheceu no coldre”, pág. 60)

E, indignado em “Tempo de Sacrifícios” (pág. 62) recompõe o mundo no lirismo idealista dos que não compactuam:

“É preciso sangrar a noite

para que a justiça se faça às claras

E os promotores de guerras

exploram em seus colos

os próprios mísseis

É preciso sangrar o sol

De seu ventre

venha calor às geleiras dos rostos tristes

Dos escombros somem-se ombros

E surjam luzes na desesperança social”

E arquiteta-se amoroso, pleno, anjo Gabriel a expulsar demônios:

“Mas armado de salvação em massa

o amor combate a carnificina

...

Seu arsenal é a palavra Paz

Bela quando justiceira

Cruel quando bélica

...

Arma de destruir em massa o ódio

os justos

hão de aniquilar tirania e abismos”

(“Precipícios”, pág. 70)

Lembrando “Crisbal, o guerreiro”, de Paulo Roberto do Carmo, professor e poeta, vindo a lume no RS na década de sessenta, diz Rossyr Berny, o aguilhão templário e justiceiro, agora reduzido à importância do real:

“Revolta

sentir a vida ferida

...

Meus sonhos febris

insistem ser alívio e abrigo

a tudo o que é vivente e sofre

Mas sou apenas homem

poeta

filho imperfeito de Deus”

(“Comovências”, pág. 69)

A autodestruição sempre foi patrimônio dos amantes da vida, dos artistas em geral, e, em particular, do artesão da palavra – o poeta:

“Confiante nas estrelas

a quem emprestas teu brilho

e nas vozes do amor

a quem emprestas tua voz

aninho-me em teu colo quente

Então despertas assustada

no porto frente ao mar bravio

E todos os sonhos

(barcos ancorados)

são postos a pique”

(“Rescaldos”, pág. 116)

Poeta, no dizer dos gregos, tem a mesma origem da palavra profeta. Os romanos não deixaram por menos e deram aos seus bardos, aos seus menestréis, o nome de “VATE”, do verbo vaticinare, que quer dizer “antever, prever o futuro”.

Rossyr, bardo crioulo, gabrielense proletário, hoje formado em Jornalismo, aperfeiçoado em Teoria da Literatura, urde o futuro em seus livros, e como editor, projeta vozes proféticas que poderão mudar o mundo, numa visão otimista, ou, no mínimo, ajudar na compreensão fenomenológica dos temporais que se abatem sobre as pessoas, ferindo de morte a vida, ressuscitando a esperança.

A Poesia é a voz dos oprimidos de coração e/ou no bolso.

Nosso poeta não tem uma linguagem doce, nem uma visão comportada sobre o que o rodeia, porque o circunstancial de sempre lhe é ácido, dolorosamente amargo.

O amor que ele retrata nesta obra é comovente para quem vai além das palavras e fórmulas comuns:

“E já era véspera de te procurar

até onde dói o martírio de Cristo

até onde alcança a voz de Deus”

(“Tudo estranhamento pleno”, pág. 111)

Seja bem-vindo o leitor ao universo pleno do instigador, do provocador de várias emoções contraditórias a quem a provecta e lúcida escritora Ney Azambuja chama de “poeta rebelde”. Para Rossyr – nos vagidos de sua poesia – a mulher abre o ventre para a palavra, enquanto o poeta cochicha:

“Tu singras

Eu sangro

Separados,

quem de nós naufragará primeiro?”

(Sem velas ou bandeiras de aceno”, pág. 37)

E clama, num vocativo amoroso, repleto de possessão, transfigurando a matéria da vida:

“Cigarra mágica,

canta por que mais me encanta

Um segundo mais que cantes

nos tocamos de eternidade”

(“No principio não éramos nem o verbo”, pág. 46)

Bem-vindos ao 17° livro do poeta Rossyr Berny, em quem o mundo renasce a cada poema!

Passo de Torres, SC, 07/02/2005.

– Prefácio do livro AMOR TSUNAMI, de Rossyr Berny. Porto Alegre: Alcance, 2006, 117 páginas.

– Do livro AVE FUGIDIA – Palavra & Diversidade, 2005/12.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/3574455