Conhecimento Sensorial 
                         O caos das primeiras sesações

       Lembro-me do momento, tão alegre e tão perturbado, em que senti pela primeira vez, a minha existência. a minha existência singular; não sabia quem era, onde estava. Abri os olhos. Que turbamalta de sensações: a luz, a abóbada celeste, o verde dos prados, o cristal das águas, tudo me chamava atenção, me animava, e me dava um enexprimível sentimento de prazer! Julguei a princípio que todos estes objetos estavam em mim e faziam parte de mim mesmo.
       Firmava-me neste pensamento nascente que me conduziam os olhos para o astro da luz: o seu brilho feriu-me; baixei involuntariamnte as pálpebras e senti uma leve dor. Neste momento de obscuridade, julguei ter perdido todo o meu ser.
       Aflito, espantado, pensava nesta grande mudança quando de repente ouvi sons; o canto das aves, o murmúrio do vento, formavam um concerto cuja suave impressão me comovia profundamnte; escutei durante muito tempo e rapidamente me persuadi  que esta harmonia era eu próprio.
       Atento, ocupado completamente com este novo gênero de existência, já esquecia a luz, esta outra parte de meu ser que conhera em primeiro lugar, quando reabri os olhos. Que alegria por reencontrar-me na posse de tantos objetos brilhantes! O meu prazer ultrapassou tudo quanto sentira a princípio e suspendi momentaneamente o encantador efeito dos sons.
       Fixei o olhar sobre mil objetos diversos: bem depressa me apercebi perder e reencontrar estes objetos a que tinha o poder de destruir e de reproduzir, a meu belo prazer, esta bela parte de mim mesmo; e se bem que ela me parecesse imensa em grandeza pela quantidade ds acidentes de luz e pela variedade das cores, julguei reconlhecer que tudo estava contido numa porção do meu ser.
       Principiava a ver sem emoção e a ouvir sem perturbação, quando uma suave brisa, cuja frescura sentia, me trouxe perfumes que me provocaram um gozo íntimo e me deram um sentimento de amor por mim  próprio.
       Agitado por todas estas sensações, obrigado pelos prazeres de uma tão bela e tão grande existência levantei-me de um salto e senti-me cnduzido por uma força descnhecida.
       Mal dei um passo, a novidade da minha situação tornou-se imóvel, a minha surpresa foi enorme, julguei que a minha existência fugia; o movimento que fizera confundira os objetos; imaginava que tudo esta em desordem.
       Levei a mão à cabeça, toquei na minha fronte e nos meus olhos, percorri o meu corpo; a minha mão pareceu-me então ser o principal órgão da minha existência; o que sentia nesta parte era tão perfeito, em  comparação com o prazer que me tinha causado a luz e os sons, e senti que as minhas ideias ganhavam profundidade e realidade.
       Tudo o que em mim eu tocava parecia restituir à minha mão sentimento por sentimento, e cada contato produzia na minha alma uma dupla ideia.
       Não estive muito tempo sem me aperceber que esta faculdade de sentir estava espalhada por todas as partes do meu ser; imediatamente reconheci os limites de minha existência, que a princípio me pareceram imensa extensão.
       Voltava os olhos para o meu corpo; julgava-o de um volume enorme, e tão grande, que todos os objetos que tinham impressionado os meus olhos não me pareciam ser, por comparação, mais do que pontos luminosos.
       Examinei-me lentamente; olhava-me com prazer, seguia a minha mão com o olhar, e observava os meus movimentos. Sobre tudo isso tive as mais bizarras  ideias; julgava que o movimento de minha mão não era senão uma espécie de existência fugidia, uma sucessão de coisas semelhantes: aproximei-a dos meus olhos, pareceu-me então maior do que todo o meu corpo, e fez desaparecer da minha vista, um infinito número de objetos.
       Principiei a suspeitar que havia ilusão nesta sensação que me  vinha pelos olhos. vira distintamente que a minha mão não era senão uma pequena parte do meu corpo, e não podia compreender que aumentava  ao ponto de se parecer de uma desmedida grandeza: resolvi, pois, não me fiar senão no tato, que ainda me não enganara, e estar em guarda contra todos os outros meios de sentir e de ser.
       Esta preocupação foi-me útil: pusera-me em movimento e marchava de cabeça erguida para o céu; esbarrei levemente contra uma palmeira; cheio de medo, levei a minha mão àquele estranho corpo, avaliei-me dessa forma porque ele não me restituira sentimento por sentimento: voltei-me com uma espécie de horror, e conheci pela primeira vez que havia alguma coisa fóra de mim.
       Mais perturbado com esta nova descoberta do que com todas as outras, tive dificuldade em serenar; e, depois de ter metitado sobre este acontecimento, concluí que devia julgar os objetos externos como julgara as partes do meu corpo, e que só o tato se poderia certificar da sua existência.
       Procurei pois, tocar tudo o que via; queria tocar o Sol, estendia os meus braços para abraçar o horizonte e não encontrava senão o vazio do ar.,
       A cada experiência que tentava, caía de surpresa em surpresa; com efeito todos os objetos se me afiguravam estar igualmente junto de mim, e só depois de uma infinidade de tentativas é que aprendi a servir-me dos olhos para guiar a minha mão;  e como ela me dava ideias completamente diferentes das impressões recebidas pelos órgãos visuais, não estando as minhas sensações de acordo  entre si, os meus juízos sobre elas não eram senão mais imperfeito, e o total do meu ser ainda não era para mim senão uma inteligência em confusão. (Buffon, De l`home, II, 133, in Lalande, Lectores sur la philosphie des sciences, p. 2,5)

                                  Roberto Gonçalves
                                           
Escritor