O TEXTO DERRAMADO

Chega o poema com sua aura de magia, e o pedido autoral de exame da peça a título de fortalecimento espiritual de como o autor está a registrar a sua intuição, enfim, se a peça atende aos cânones estéticos predominantes, na contemporaneidade formal. Examinemos com a devida atenção e o carinho que o autor merece.

“COTIDIANAMENTE MINHA

Sergio da Silva Sena

Prossigo, mas não me espere

Não posso me apressar,

Pois sinto forte a pisa que a vida brusca me dá

A cada passo sentindo a dor do frio que vem

Na rua, na calçada ou na esquina, menos numa casa tão bem

A dor da carência tem; da família, daquilo que de humano carrego,

Mas no provido da roupa e do grão sinto que sou estéril...

Dessa escassez tenho medo, porém pelos laços das circunstâncias estou preso

Certo que essas coisas existam, estes seus laços me privam

Sou forte e fingindo disfarço, dissimulando tudo, estou indo, ninguém vê

Mas, por favor, não me espere vindo; aumentando o peso do fardo infindo

Por essas causas vou me reduzindo diminuindo e sumindo...

Então percebo presença, mesmo que ainda na ausência

Mostre-me então, seus tesouros, quero apreciar

todos seus passos aonde conseguiu chegar,

Sorrindo, chorando, vencendo e perdendo

Quero tudo, poder contemplar,

Laranjas cor-de-rosa são azuis, mas do que se vai revelar, posto que não haja limites, vem, vamos embora pra lá...

Apresse- se nesta fronteira, da força que do sangue suscita

Prossegue alegre agora, se queres, posso lhe acompanhar

Não quero jamais ser seu dono, apenas expectar esta real e fantasiosa sina

que a vida boa te dá

Contarei seus números e inúmeros somado e dividido multiplicando,

pesando sua pressão, suportando pra num risco, a fim de um azimute, no infinito traçando, podermos em sonhos chegar

Vem, vamos embora pra lá...”

– remetido via Facebook, em 21/09/2013.

Estavas inspirado, emocionado, hein, colega Sergio? No mérito formal, o texto que aparece acima é mais uma mensagem intimista do que um poema. Consequentemente, deveria ser lavrado em frases e não em versos, porque os versos (rimados ou não) caracterizam formalmente a Poesia como gênero, mas isto não necessariamente quer dizer que o texto contenha Poesia, porque há versos com ou sem Poesia, e poucos autores, novatos ou experimentados, se dão conta disto. A síntese vocabular é outro elemento delator da Poesia da Contemporaneidade, mas há versos que, sem que o seu criador perceba, nascem na atualidade, porém com o pé no passado. Já nascem defasados, portanto... Neste texto há muito derramamento verbal, portanto, há pouca síntese, e a Poética perde em corporificação, restando apenas alguns elementos imagéticos propostos por rarefeitas metáforas. Enfim, seria interessante que o texto fosse reescrito em frases, e não em versos. A linguagem poética se caracteriza pelas figuras de linguagem, especialmente as metáforas ou metonímias, as quais dão ao texto o sentido conotativo – que é bem diferente da linguagem do lugar comum da vida – e instauram a codificação de linguagem. E, por esta, procuram dizer muito com o uso de poucos vocábulos, enfim, utilizam a síntese vocabular. As metáforas bem urdidas são polivalentes, profundas ou verticais, e estas delatam a Poesia como gênero, e a fazem espiritual, intangível e recatada. É necessário, para compreendê-la, procurar abrir os seus códigos... Em Poesia, é desaconselhável o derramamento verbal. E este derramar-se a exclui como gênero literário. Deixemos isto para a prosa narrativa, que este é de sua natureza: pouca linguagem figurada, o que equivale dizer pouca metaforização, e consequentemente, mínima codificação de linguagem e precedência na construção de personagens, tramas, lugares, situações, etc. No texto em exame, o que temos são metáforas horizontais ou rasas, com monovalência imagética, portanto, constata-se muito pouco de Poesia... Se tivesse de classificar o texto segundo a categoria literária, formalmente teríamos uma “carta” ou “mensagem”, se levarmos em conta a sua brevidade. Parabéns! Aconselho-te a perseverar na experimentação... Quando insistimos, a linguagem poética nos encontra, porque é ela que nos escolhe, e não nós... Mas é necessário persistir na sua localização porque o encontro se torna mais esperável...

– Do livro A FABRICAÇÃO DO REAL, 2013/15.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4494402