Algumas Palavras sobre a Exortação do Silêncio

Há dias em que simplesmente não sinto vontade alguma de prosseguir. Acorda-se pela manhã, uma sensação semelhante à ressaca de alguma bebida que evitei para não ter ressaca me toma desprevenida. Cambaleio nesses pensamentos sempre inacabados. Sabe, a pendência parece esfolar a pele com uma delicadeza quase amorosa. Talvez eu tenha me apaixonado por ela - ou o que ela provoca: o infortúnio da esperança.

Há sempre uma dívida em jogo. Sempre. . . tempo demasiado longo para algo tão circunstancial.

Pediu que eu lhe dissesse toda vez que encontrasse os caramujos no jardim para que jogasse sal sobre seus corpos gosmentos. Iriam dissolver aos poucos, talvez tendo suas terminações nervosas atenuadas a cada corrosão. Sabe-se lá. Eu preferi optar pela omissão, e a cada caramujo me fiz de quem se focou demais no cuidado do jardim a ponto de não enxergar nada além das plantas. A probabilidade de eu estar com ânimo naquela manhã - eram 8h da manhã- talvez decorresse do fato de eu não ter usufruido duma noite de sono, e consequentemente, não ter me deparado com a sensação do despertar e notar que não deixei este corpo enquanto dormia, seja lá o que "este corpo" signifique. Escrevo isto enquanto realizo as atividades de cuidado do jardim. A escrita se dá antes da gravura dos morfemas nalgo que superará a temporalidade do "meu" corpo. Dá-se na inscrição dessas palavras na realização mesma do pensamento. Engana-se quem pensa não haver materialidade no pensamento. Engana-se como quem se encanta narcisicamente com o reflexo no espelho - é produto da circunstancialidade, já disse, porra.

Foi salgando os caramujos tanto quanto não salgam os chefs franceses os seus numa mesa de restaurante frequentado quase exclusivamente por elites. Talvez a hera compense cobrindo tudo e enterrando com sombras essa dimensão de minhas memórias. Já parou para pensar como se dá a obtenção de cloreto de sódio, o sal de cozinha? Isso, que é resultado da ligação iônica entre o sódio e o cloro, esse tipo de ligação que envolve uma quantidade muito muito muito grande de átomos, de modo que, ao final, um aglomerado de íons que se arranja geometricamente bem definido em retículos cristalinos, tal como numa partitura. Isso que desempenhou durante um bom tempo um importante papel na situação socioeconômica mundial. A sua posse já chegou a representar o luxo, guerras foram travadas por conta de sua posse. Há provavelmente países em que seu uso ainda deve ser exclusividade de ricos, exclusividade esta proveniente da divisão de classes. Por falar em divisão de classes, nada mais justo do que lembrar que a palavra "salário" vem de salarium, pagamento de saquinhos de sal dado aos soldados romanos. A lágrima é salgada e esta me é gratuita. Gratuita também, é a forma como se temperam as palavas almejadas contra mim cotidianamente.

Em 1988, o Achatina fulica, popularmente conhecido como caramujo africano, foi introduzido no Brasil como uma forma barata de substituir o escargot. Sua invasão é considerada algo grave para as plantaçõe agrícolas brasileiras. Invasão esta que se deu, lembremos, com a sua introdução no cenário brasileiro como uma forma barata de substituir o escargot. Falo do caramujo africano, mas poderia estar falando de qualquer um de nós. Emblematicamente sua morte se dá com o despejo de sal sobre seu corpo.

"- Alguém quer café?", pergunta uma terceira pessoa que até então eu não sabia estar presente no ashram. "Com certeza", respondo, os olhos cintilantes frente a esse estimulante que passou a ser incorporado nas empresas como forma de manter um cárcere personalizado para os empregados. Afinal de contas, nos é permitido personalizar tudo, ainda que não tenhamos autonomia sobre essa personalização. Nada melhor do que um estimulante para um modo de viver tão desestimulante. Um gato preto com manchas alaranjadas - ou um gato laranja com predominância de fios pretos justapostos aos seus fios alaranjados, ou algo intermediário para o qual não encontro significante que dê conta em decorrência de um realismo asfixiante que afirma não haver alternativas, operando por reducionismos, algo como "Dust in the wind" assobiado por Phillip Glass- corre um tanto espantado pelo jardim. Isto me distrai. Estou num jardim.