A INSPIRAÇÃO É O FOGO ORIGINAL

“Trabalhar num poema é tarefa pra doido. Após mil revisões, a criação pode vir a se perder.”

– Raimundo Lonato, poeta de Paulínia, SP, pelo Facebook, em 23/09/2020.

Deixa de exagerar, meu poetamigo Rai Lonato! Esta postura desestimuladora à revisão do primeiro sopro é altamente nefasta aos noviços em Poesia, que, em regra, por não conhecerem o ofício, acreditam que o poema nasce pronto, porque é mais fácil e agradável ao poeta-autor nada refazer: dá muito trabalho e, no íntimo, atinge o ego do pretenso criador, que acredita piamente que escreveu sua última obra-prima. Tudo o que é exagerado não se presta à arte, em qualquer dos ramos dela. Em tua posição de "após mil revisões, a criação pode vir a se perder" percebe-se a crítica ao bom senso. É óbvio que após tanta "transpiração" sobre o rabisco original, ainda mais no poema curto, enxuto, sintético, como é o poema da contemporaneidade, o eixo do assunto que norteava a garatuja inicial, até mais do que o conteúdo, tomará outro sentido e o seu autor sentir-se-á psicologicamente frustrado, porque o poema funciona como um objeto prazeroso para o seu autor. A criação poética, por mais que contenha um mínimo de ação racional no segundo momento de criação, não deve ferir ou socavar as ideias que o motivaram quando da centelha da inspiração, que é, repito, o "fogo original" prenhe de matéria inerte, inanimada, eis que ainda não passou pelos olhos ou pelo mecanismo auditivo do poeta-leitor, quando a prenhez poética ocorre através da escuta de áudio. A definitiva forma dada ao poema, geralmente se consegue após o cumprimento do segundo momento de criação – o da transpiração – em que o autor é um aplicado obreiro de artesania – um ourives – aquele que cinzela o poema à exaustão, caso queira produzir uma peça artesanal esteticamente bem construída. É o autor que Platão, ao tempo dos gregos, em sua "Arte Poética", chama de "o poeta-artífice". Ao agente criador que acredita somente na inspiração, o filósofo em voga chamou de "o poeta-possesso", que é aquele que não faz mais nada do que deixar verter o fluxo emocional e assim entrega o poema como peça pronta e acabada. Eu, como autor e crítico literário, quanto a esse processo de criação, me afilio à corrente que entende que o "poeta-artífice", o autor que burila, o que cinzela meticulosamente os versos originais, em regra consegue um poema de melhor qualidade estética, contendo mais nuanças pontuais condizentes à condição humana, em que “a palavra é a casa do ser", como quer o filósofo alemão Martin Heidegger (1889/1976). Porque é pela palavra aos olhos de si e dos outros que o poema se constrói como a materialidade do Belo. É por ela que o humano traduz a sua concepção de estar no mundo em estado de felicidade ou espelhado pelo mito de ser uma criatura pronta para cumprir a sua sina até a finitude. No mais, ele é apenas um vivente que cumpre sua obrigação entre o nascer e o morrer.

MONCKS, Joaquim. POESIA A CÉU ABERTO. Obra inédita, 2020.

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