A RELIGIÃO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA JUNGUIANA

A religião é uma palavra originária do latim (do termo religare), cujo significado nos remete a ideia de uma religação com o sagrado e o divino, o qual está presente no íntimo e no coração de cada ser humano. De fato, há uma tendência inata no homem de acreditar em algo que está para além de sua capacidade racional e intelectiva, em algo de cujo caráter é transcendente e elevado; e, ao mesmo tempo, de vincular a sua vida e existência a um suprassentido capaz de guiá-lo e orientá-lo no decorrer da vida.

Murrau Stein, num artigo intitulado ''Aspectos espirituais e religiosos da análise moderna'' (que integra o livro ''Psicologia analítica: perspectivas contemporâneas em análise junguiana), ao abordar a inclinação humana à religiosidade, vai comentar que: ''De fato, todo mundo tem, até certo ponto, uma inclinação religiosa, pelo menos implicitamente. A função religiosa é uma espécie de instinto mitopoético, e evidencia a tendência intrínseca da humanidade a criar mitos. Essa função se manifesta sempre que as pessoas fazem cultura e tentam descobrir significado. Ela surge espontaneamente em indivíduos, e pode ser estudada nos registros históricos de religiões e nas práticas rituais de todos os seres humanos em todos os períodos de tempo''.

Jung, o psicólogo que abordou a espiritualidade humana a nível de ciência, ressalta uma experiência adquirida durante o tempo em que trabalhou com os seus pacientes na área clínica: ''Dentre todos os meus pacientes que já ultrapassaram a metade da vida, ou seja, que já têm mais de 35 anos, não há um único cujo problema definitivo não seja o posicionamento religioso''. (O.C. Vol. 8/2).

No que diz respeito ao símbolo religioso, é importante dizer que ele pode assumir vários significados e interpretações, uma vez que ele não esteja confinado apenas numa cultura religiosa. Enquanto um sinal mostra claramente o sentido de sua mensagem, não podendo de modo algum ser modificado e haver qualquer outra interpretação, um símbolo pode apresentar vários sentidos dependendo do lugar em que ele é reverenciado, ou seja, para uma cultura, indivíduo ou comunidade ele pode ser encarado de uma forma, e para outra cultura, indivíduo ou povo ele pode assumir outro significado, muitas vez até perigoso e destruidor. O que confere ao símbolo um poder numinoso não é tanto a sua força intrínseca, mas o que ele representa na vida de um povo, nação ou até mesmo pessoa. No livro escrito quase no final de sua vida em colaboração com outros autores, "O homem e seus símbolos", Jung a respeito de um determinado símbolo religioso, vai o dizer o seguinte: "Assim no caso de um cristão devoto, o símbolo da cruz só deve ser interpretado no seu contexto cristão- a não ser que o sonho forneça uma razão muito forte para que se busque outra orientação. E, mesmo nesse caso, deve-se ter em mente o sentido cristão específico. Evidentemente, não se pode dizer que em determinado tempo e circunstância, o símbolo da cruz terá a mesma significação. Se fosse assim, perderia sua numinosidade e vitalidade para ser apenas uma palavra".

A respeito do posicionamento religioso e o símbolo que esse posicionamento fomenta, Verena Kast, no livro "Jung e a psicologia profunda", vai dizer: "O posicionamento religioso é transmitido quando se experimenta símbolos que são significativos para a emoção. Um símbolo vivo afeta o ser humano em sua emoção, tem um significado, confere a impressão de relação com esse símbolo, o que também é sempre um aspecto da concentração, e estimula o pensamento e a fantasia, apontando para o futuro. (...) Segundo Jung, o símbolo vivo tem um 'efeito que produz e estimula a vida'. É comum a emoção proporcionada pelo símbolo ser designada como 'religiosa' e transmitir uma experiência sensorial. O ser humano é capaz de suportar muitas coisas quando tem a impressão de que o que está fazendo tem sentido".

É esse mesmo sentido que dá ao humano uma condição de participar de algo que transcende as fronteiras do seu próprio ser, abarcando uma comunidade, uma família, uma nação ou um povo. Lévy-Bruhl, um antropólogo francês, cunhou o termo participação mística para designar um fenômeno onde um grupo de pessoas se identificam por intermédio de uma doutrina, religião ou mesmo ideia e filosofia, conferindo um sentimento de pertencimento a algo, um sentido de participação que produz uma profunda carga efetiva e emocional entre seus membros.

Esse fenômeno descrito pelo antropólogo foi fundamental para Jung extrair boas concepções a respeito da ideia de identificação projetiva (onde uma pessoa exerce poder de influência sobre outras pessoas), bem como uma boa parte de suas concepções sobre a religião e o sagrado na vida de uma comunidade.

Rudolf Otto, um teólogo protestante, foi também outra influência marcante no pensamento de Jung, especialmente sobre a sua concepção de numinoso. Otto vai pensar o numinoso como uma experiência emocional que está presente em todas religiões, até mesmo as de caráter monoteísta.

É através desse conceito que Jung pensa as manifestações religiosas, as quais são componentes que integram o inconsciente coletivo e, ao mesmo tempo, são responsáveis pela criação de símbolos naturais de grande poder organizador. Em psicologia e religião, o psicólogo de Zurique vai dizer: "Antes de falar da religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é — como diz o vocábulo latino religere — uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de "numinoso", isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal".

O numinoso na experiência individual e coletiva pode se revestir de grande poder, induzindo a um estado alterado de consciência e a uma sensação profunda de que uma força maior operando no seu ser. Essa força do inconsciente coletivo é resultado da atuação dos arquétipos, os quais pode ser surtir efeitos devastadores ou então efeitos positivos e salutares.

Desse estudo do inconsciente coletivo, cuja força pode conduzir as massas a uma devoção generalizada a um líder de grande carisma, Jung vai se deparar, portanto, com essas tendências arquetípicas (as imagens primordiais); e, em muitas ocasiões, vai manifestar uma preocupação no estudo da função transcendente como forma do indivíduo atingir o autoconhecimento e também a ampliação da consciência (Pois quem sabe com esse mergulho, ele possa se dar conta de suas atitudes mais impensáveis e irrefletidas?). O resultado dessa busca é, certamente, a realização do si-mesmo, um trabalho interior de alguém que conseguiu se individuar, até porque só atinge a totalidade aquele que compreende a sua dinâmica interna, integrando a sua sombra à consciência.

Marie Von-Franz, no livro "o homem e seus símbolos", traz uma reflexão sobre a individuação entre indivíduos que buscam criar laços afetivos coesos e honestos, uma forma de se integrar em grupos sem perder a autenticidade de sua existência. A autora vai dizer: "Tanto quanto compreendemos hoje o processo de individuação, O self tende, aparentemente, a produzir esses pequenos grupos criando, ao mesmo tempo, laços afetivos bem definidos entre certos indivíduos e um sentimento de solidariedade geral. Só quando essas conexões são criadas pelo Self é que se pode ter certeza de que o grupo não será dissolvido pela inveja, pelo ciúme, por lutas ou por qualquer tipo de projeção negativa. Assim, a devoção incondicional ao nosso processo de individuação traz também melhor adaptação social".

O si-mesmo é o centro onde emana a consciência de nosso ser total; é o arquétipo que expressa a integridade de nosso ser, levando um individuo a se individuar e podendo até mesmo estabelecer relações de caráter profundamente afetuosas, singelas e duradouras. Esse é, portanto, um conceito ou expressão utilizada por Jung para abordar uma vivência com a totalidade e com o numinoso. E essa experiência pode ser uma importante aliada para a concretização de uma religiosidade autêntica num indivíduo ou num grupo. É presumível que numa manifestação religiosa autêntica, exista um processo em andamento, um processo conhecido por individuação. Nesse processo, o indivíduo sabe melhor se diferenciar da massa (manifestando a sua singularidade) e tem até melhores chances de formular a sua própria ideia do sagrado e do divino, mesmo fazendo parte de um grupo ou comunidade.

É também na individuação que um ser humano vivencia uma sensação mais próxima do que seria a completude e, ao mesmo tempo, consegue chegar ao encontro com o seu ser mais profundo, atingindo uma maior consciência de si mesmo e da manifestação divina no seu íntimo. Quando Jung fala sobre a espiritualidade, ele certamente está se referindo a essa experiência, propiciando a descoberta do numinoso e do sentido da vida.

A respeito do numinoso para a experiência religiosa, Murray Stein no livro "jung e o caminho da individuação" nos dá uma boa explicação desse assunto e da própria vivência da individuação: "Se concordarmos com Jung que a única cura verdadeira da neurose consiste em superá-la por meio de uma individuação sempre maior, então tratamento terapêutico baseado nesse modelo deve necessariamente incluir 'a abordagem do numinoso', como Jung afirma de maneira decisiva nessa carta. É certo dizer que o princípio de individuação, conforme exposto por Jung e seus seguidores, implica a existência numinosa como característica central".

Jung, ao contrário de Freud, que via a religião como uma neurose coletiva no seu livro "O futuro de uma ilusão", Jung enfatizava a importância da mesma como forma de evitar dissoluções neuróticas no psiquismo humano, tendo como foco o encontro de um ser humano com o seu SELF ou o Si-mesmo, ou seja, o arquétipo que diz respeito a sua totalidade e a imago dei.

O psicólogo de Zurique, no livro Psicologia e religião, apresenta a proposta de sua psicologia e de seu trabalho psicológico com o homem religioso, deixando claro a sua missão como pesquisador e psicoterapeuta: "Eu gostaria de deixar bem claro que, com o termo 'religião', não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa. A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. Um dos exemplos mais frisantes neste sentido, é a conversão de Paulo. Poderíamos, portanto, dizer que o termo 'religião' designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso".

Tal experiência é suma importância para o trabalho clínico e terapêutico, na medida em que convida o paciente a abordar a sua experiência com a totalidade do seu ser, o sagrado, o numinoso e a imago dei (a imagem de Deus no seu íntimo).Fazendo tal descoberta, é mais provável que uma vida humana consiga adquirir mais sabedoria, autoconhecimento e experiência espiritual e religiosa.

No livro "Sincronizando tempo e eternidade", Murray Stein, refletindo sobre a imago dei, nos mostra que: "A doutrina do Anthropos era uma das favoritas de Jung, que sobre ela se debruçou profundamente em sua grande última obra, Mysterium Conniunctionis. O projeto da alquimia, como descobriu, é resgatar essa imagem do Anthropos, que reside no interior da prima materia, um increatum e, como tal, equivalente à Divindade. Em outras palavras, essa imagem da plenitude está integrada às profundezas do inconsciente e precisa manifestar-se no decorrer da obra da individuação. Ela é uma história de resgate da plenitude original, perdida em algum momento do desenvolvimento psicológico humano (do ego), mas não indisponível para sempre".

Sem dúvidas, quando o indivíduo transcende o seu ego em prol da descoberta de seu ser mais profundo e autêntico, ele consegue se individuar e tornar consciente aquilo que para ele é mais desconhecimento e ignorado em si mesmo. Essa ampliação da consciência, torna possível um contato mais abissal com o divino no seu ser e um sentimento de maior plenitude e integridade pessoal.

Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 03/10/2021
Reeditado em 06/10/2021
Código do texto: T7355955
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