Wannah - Parte I

Wannah

No half pipe

Os dois amigos estavam zoando com ele. Ele estava parado, tentando refletir se deveria seguir em frente ou abandonar tudo. O problema maior não era sentir a dor se errasse o 900 backside. O medo era pela humilhação que os amigos lhe infligiriam. As mãos estavam suadas dentro das luvas e o coração batendo tanto que não deixavam sua mente se concentrar. Uma loira parecia aproximar-se como se não tivesse pés. Parecia flutuar como uma névoa de gás, se aproximando, querendo envolve-lo.

Por fim, limpou a testa como se quisesse afastar seus temores e tomou impulso. O skate rodou macio pelo half e voou alto quando acabou o concreto. Ele, sem respirar, rodou duas vezes e meia e caiu novamente na pista. Feliz com a vitória, subiu até o coping para receber os abraços dos amigos. Olhou para ver se a loura o estivera observando mas a viu ao longe, muito mais longe do que iria se estivesse andando com seus próprios pés.

Na caverna

Um macaco quase humano buscara refúgio dentro de uma caverna, perseguido por um predador. Sentira-lhe o cheiro e, de pronto, buscou seu melhor refúgio. Avançou até onde a luz permitia-lhe enxergar e escondeu-se atrás de uma pedra. Podia escutar os passos do tigre de sabres rondando a entrada da caverna. O medo fazia com que seu pulmão exigisse mais ar, ao mesmo tempo que o constringia para evitar barulhos. Um suor de pânico, copioso, caiu em gotas sobre uma pequena poça de lama, que a umidade da caverna produzira, aumentando-a um pouco mais.

Muito tempo se passou até que conseguisse um lapso de coragem para ver se o predador já tinha ido buscar outra vítima. No anteparo de movimentos lentos e silenciosos, tentou chegar até a borda da caverna. Não foi muito alem. O tigre apenas esperara sua falha para localiza-lo. Não conseguiu quase nem recuar. Foi atacado e dilacerado de forma brutal. O sangue espirrou pelas paredes e pelo chão e algumas gotas caíram sobre a pequena poça de lama aonde seu suor se lançara e se misturou a ele.

O sol da tarde, ainda forte naquele verão constante, irrompeu pelos cantos acessíveis da caverna. Os raios produziram calor suficiente para arrancar gases do chão úmido e fizeram a pequena poça de lama, ainda cheia do sangue e do suor de pânico da vítima, borbulhar.

Índio

Índio analisava o corpo detalhadamente procurando pistas para aquela seqüência de mortes que varria a cidade. Se pensasse como um branco buscaria digitais, armas, fibras ou fluidos corporais. Se pensasse como um índio saberia que ela tinha escolhido um novo campo de caça.

Viera para a cidade por causa desses pequenos programas do governo que ofereciam bolsas para estudo. A intenção principal era formar profissionais que retornassem às aldeias para melhorar a qualidade de vida das tribos mas ele nunca retornara. Não gostava de ser índio. Queria viver entre os brancos, falar como eles e trabalhar como eles, embora estivessem estampadas em seu rosto todas as características de sua raça. O apelido de Índio não o incomodava mesmo porque os brancos jamais conseguiriam pronunciar ou decifrar a beleza de seu nome verdadeiro.

Como um branco, estava atento aos detalhes, vasculhando o terreno ao redor do corpo, colocando objetos em saquinhos plásticos para uma análise posterior e solicitando que tirassem fotografias que cobrissem a cena. Como um índio queria gritar-lhes que todo aquele trabalho era inútil, que ele sabia a causa de todas as mortes e que nada e ninguém poderia fazer algo. Mas os brancos não escutam os índios; sempre acham que são superiores a eles. Eles vivem procurando segredos nas florestas que qualquer curumim saberia dizer. Invadem-na com seus aparelhos e equipes e não dão atenção à sabedoria dos xamãs e dos mais velhos. Se eles aprendessem a ouvi-los, os dois mundos seriam melhores.

Cabujo

Matar a velhinha não tinha sido bom negócio. Mas também como iria imaginar que ela reagiria. Estivera campanando-a no banco e a vira sacar dinheiro. Acompanhara-a até sua casa pois não encontrara nenhuma oportunidade no trajeto. Pulou o muro e esperou ela abrir a porta dos fundos. Entrou com violência, pressionando-a para mostrar onde estava o dinheiro. Ela foi submissa até ele colocar as mãos na grana. Quando ele estava saindo, ela se atirou as suas costas e tentou arrebatar-lhe o dinheiro. Querendo se livrar rápido dela, apertou seu pescoço e só o largou quando ela colocou a língua inerte para fora em um rosto cheio de pavor. Largou-a no chão como se larga um saco. Quando ele percebeu o que tinha feito, saiu rapidamente, mesmo sabendo que deixara um milhão de digitais e indícios na casa, com os quais seria rapidamente identificado.

Na rua, achou que seria melhor atravessar o parque. Já estava noite e ninguém se atreveria a segui-lo por ali. Encurtaria caminho e teria tempo para pensar como fugir. Estava suando, não só pela caminhada mas também pelo medo. Como ladrão era conhecido mas não como assassino. A perspectiva de passar longo tempo na cadeia fazia seus sentidos buscarem ameaças por toda parte.

Passou perto de uma loira que estava sentada em um banco. Devia ser uma prostituta. Se fosse em outro momento, pararia e pagaria pelos seus serviços. Agora, só queria fugir e procurar um lugar seguro para ficar até o acontecimento esfriar.

Wannahmarisi

Índio vinha da aldeia que a si próprios se davam o nome de Wannahmarisi, que se fosse traduzido para a língua sem brilho dos brancos seria algo como “o povo que não tem medo”. Não que fossem guerreiros destemidos que buscassem em outros povos a dominação. Apenas eram acostumados a não mostrarem medo em nenhuma circunstância. Os mais velhos sempre vinham com o bordão clássico de que o medo mata e ele sabia que isso era verdade. Muitos dos seus, que mostravam fraqueza ante as adversidades, invariavelmente eram encontrados na floresta, rostos limpos de expressão mas com os corpos enrijecidos como se tivessem suportado alguma grande tensão antes de morrerem, exatamente como aquele cara estava ali, agora, estendido na grama. Já vira, quando curumim, essa expressão, algumas vezes.

Ele sabia que, assim como ele e alguns animais que tiveram que abandonar as florestas por causa da chegada dos brancos e suas máquinas e se adaptaram às cidades, ela estava procurando vítimas em um campo de caça muito maior e mais farto.

Lembranças

Cabujo, pelo parque, volta e meia, apalpava o bolso para certificar-se de que o dinheiro ainda estava ali. Não queria perder o pequeno lucro que tivera com a velha.

Sentada em um banco, uma morena olhava-o fixamente. Devia ser outra prostituta, embora lhe parecesse que ela tinha um rosto suave como uma modelo fotográfico e isso desmentisse a primeira impressão que tivera dela. Mas, agora não tinha tempo para essas coisas. Só queria procurar onde se amoitar e ficar por uns dias.

Um inseto bateu-lhe no rosto, trazendo a lembrança de uma mão batendo-lhe incessantemente no rosto. Suspenso pela camisa, podia ver seu pai esbofeteando-o, após um dia sem trabalho e com muita bebida. A mãe caída no chão, tinha sangue espalhado pelas roupas e pelo chão. Tentando acudi-la, virara o foco da descarga da raiva que seu pai assumia pela incessante má sorte que dizia que o acompanhava mas que ele via apenas como vagabundagem. Parecia que estava sentindo o mesmo terror que sentira por seu pai naquela época.

A sua dor é o meu alimento

Sentiu outra batida na testa. Passou a mão sobre o local como se isso pudesse aliviar a dor. Já estava suando bastante. A camisa já estava ficando molhada e gotículas começaram a aparecer em sua fronte. Os olhos começaram a arder e ele tentou limpa-los com os dedos. Sentiu na mão algo viscoso e parou após olha-las e perceber um liquido espesso nela. Era sangue! Será que era da velha ou dele próprio?!

Procurou e achou um bebedouro em um local próximo. Tentando lavar as mãos sentiu-as queimando como se estivessem jogando ácido sobre elas. Abaixou-se para suportar a dor da queimadura, com as mãos crispadas. A direita parecia estar se derretendo e querendo mostrar a alvura dos ossos das pontas dos dedos.

Ergueu-se rapidamente e passou a correr. Uma figura de mulher parecia acompanha-lo ao seu lado mas ao longe, junto às árvores. Ela parecia deslocar-se pelo ar, envolta em uma leve bruma. Devia ser uma daquelas malditas prostitutas que vira antes!

Quanto mais corria, mais parecia que ela se aproximava. Quando parava, ela também o fazia mas sempre mais perto e quanto mais se aproximava mais parecia que a névoa se espalhava ao seu redor. As mãos ardiam como nunca.

Via o rosto da velha, estupefata ante a morte, com o rosto arroxeando-se pela falta de ar. E, quanto mais apertava aquele pescoço, mais lhe parecia que era o rosto da própria mãe que nunca conseguira defender, quando criança.

A visão estava ficando turva pelo sangue que escorria pela testa. Tentava limpa-lo com os braços e ele parecia mais copioso a cada instante. A mulher se aproximava cada vez e o nevoeiro parecia estar se estendendo até ele.

Por fim, parou pelo cansaço. Sentiu a névoa envolve-lo completamente. A mulher apareceu em sua frente. Tinha um rosto tão suave e meigo. No entanto, seus olhos desmentiam a calma de sua face. Eram olhos de quem gosta de provocar a dor e de provar a dor dos outros. Ela sorriu e estendeu-lhe os braços. Sentiu que em seu corpo entrava agulhas e o imobilizava, como um louva-a-deus faria com suas vítimas. A mulher ainda sorria mas seu aspecto parecia transmutar-se. De sua boca saíram quelíceras iguais as de uma aranha, fazendo barulhos de roedor quando se tocavam. Ser pudesse, gritaria muito, não só pela dor que as agulhas provocavam mas pelo terror que sentia. Ela parecia sentir prazer em vê-lo inundado pelo pânico de estar preso e nada poder fazer.

Ela abriu mais a boca e ele viu um estomago negro, com uma infinidade de dentes brancos, voltados para baixo. Lentamente, ela foi vomitando o estomago em seu peito, em seu pescoço, em seu rosto, apenas deixando seus olhos livres, para que ele pudesse ver seu próprio fim com todos os detalhes.

Conclusões

Índio jogou as luvas cirúrgicas que usara em uma cesta de lixo próxima. Não havia muito o que fazer. Ele sabia o motivo daquelas mortes mas suas explicações não convenceriam nenhum branco. Nas estatísticas figurariam como causa inexplicável, como infarto ou qualquer coisa plausível que não causasse pânico nas demais pessoas. Um ou outro cientista tentaria buscar explicações em vírus ou bactérias, pensando que se tratasse de uma nova doença. Mas Índio sabia o que acontecia.

A sua sorte, até agora, era que ela não produzira nenhuma vítima que não fosse de algumas pessoas das quais a sociedade não sentiria falta ou até quisesse elimina-las. A maioria era bandidos, ladrões, traficantes e assassinos. Mas ele sabia que ela não tinha nenhuma moral parecida com as dos humanos. Ela apenas queria caçar, não importasse quem. Escolhia suas vítimas pelo medo. Ela cheirava o temor que aparecia em nossas almas. Era seu único critério.

Encontros

Depois de terem recolhido o corpo e vasculhado a área, os demais se foram. Índio ficou ali, a pensar se poderia fazer algo a respeito. Depois, cansado, resolveu ir embora.

Em um canto do parque, embaixo de uma árvore, uma mulher parecia convida-lo a se aproximar. Ele não se deixou enganar. Era ela! Uma pequena névoa parecia envolve-la.

Devagar, lentamente, foi se aproximando. Entrou dentro da pequena bruma até poder chegar perto. De súbito, a névoa o envolveu e ele ficou a esperar. Um rosto suave de mulher postou-se à frente do seu. Ela sorriu de modo encantador. Seria linda se não fosse pelos olhos de predador.

Wannah, disse ele

Wannahmarisi, disse ela.

A bruma o envolveu por completo, até dissipar-se e ir embora.

Cães de caça

Índio riu como se tudo aquilo fosse alem de sua realidade. Deveria estar ficando louco. Sentiu a mensagem que ela queria lhe transmitir. Era isso que ela queria? Era isso que ela lhe propusera? Era isso uma espécie de acordo?

Ele também era um caçador. Buscava nas cidades uma caça especial: homens que se julgavam acima dos outros e produziam o mal. Para isso tinha saído de uma aldeia perdida e agüentava as zombarias que os brancos lhe faziam por causa da cor de sua pele e dos traços que ele trazia de sua raça.

Não era um companheiro que ela precisava mas de um cão de caça, igual aqueles que empurram a vítima para um caçador. Era isso que ela precisava. Alguém que provocasse medo e fuga e que empurrasse a caça até onde ela não poderia ter mais saída.

Campos de caça

Alem do parque, Índio viu as luzes da cidade. Pareceu-lhe mais que uma floresta, cheia de pessoas boas e más. A sua função era impedir que os maus se tornassem superiores a aqueles que apenas cuidavam de sua vida. Definitivamente era um bom campo de caça.

ccaiusc
Enviado por ccaiusc em 24/04/2022
Código do texto: T7501956
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